“Quando uma criança conta uma história de abuso, pode crer porque é verdade. Elas não têm nem ideia para criar uma história de que estava sendo abusada por atos libidinosos, elas não sabem muitas vezes discernir o carinho do abuso”. A frase proferida pela coordenadora do Serviço de Atenção à Mulher Vítima de Violência Sexual do Piauí (Samvis) reflete a realidade tal como ela é: as denúncias até chegam à rede de proteção, mas são muito aquém do que de fato acontece, e essa situação se agravou ainda mais em tempo de pandemia, quando agressores e vítimas tiveram que ficar confinados no isolamento social imposto pelo coronavírus.
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Mas mesmo sabendo que há uma subnotificação, ou por descrédito na vítima ou por medo, os números dos atendimentos às vítimas de violência sexual no Piauí são alarmantes. Nos últimos dois anos, durante o período da pandemia, o Samvis realizou 901 atendimentos de crianças, adolescentes e mulheres adultas abusadas sexualmente.
Foram 431 atendimentos em 2020 e 470 até novembro de 2021. Nos dois anos, pelo menos 80% das vítimas eram crianças e adolescentes, e 34,5% delas eram crianças de até 10 anos de idade. Para a coordenadora do Samvis, dra. Maria Castelo Branco, os dados desnudam não apenas uma realidade cruel, mas também expõem a vulnerabilidade das vítimas deste tipo de crime.
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“Isso pode acontecer em qualquer lugar, em qualquer casa onde a vítima não tem ciência de que aquilo que ela está vivendo é uma violência, ou em ambientes onde ela não se sente encorajada a denunciar e a sair desse ciclo de sofrimento e abuso. No caso das crianças de até 10 anos, a gente vê bastante o descrédito da vítima e a própria falta de discernimento dela sobre o que é carinho e abuso. Elas não sabem se aquilo é brincadeira ou se elas estão sendo usadas para causar prazer no agressor”, pontua a coordenadora do Samvis.
Na maioria dos casos, os abusadores fazem parte do seio familiar ou são pessoas próximas que frequentam os mesmos ambientes que a vítima. Chama atenção o grau de parentesco: boa parte dos casos de abuso sexual são praticados pelo pai ou padrasto da vítima.
Os números do Samvis apontam que 16,93% dos atendimentos têm como vítima pessoas abusadas por alguém conhecido – sem incluir vizinhos, padrasto ou pai; em 12,29% dos casos, o agressor era um vizinho; em 11,36%, o agressor era o padrasto e em 10,9% a agressão era praticada pelo próprio pai da vítima. Somando-se os crimes praticados por pais e padrastos, eles equivalem juntos a 22,26% dos atendimentos realizados pelo Samvis.
"Elas [as crianças] não sabem se aquilo é brincadeira ou se elas estão sendo usadas para causar prazer no agressor" - Maria Castelo Branco, coordenadora do SAMVIS
Gestantes
A situação se torna ainda mais delicada quando a vítima acaba engravidando em decorrência do abuso sofrido. Somente no último dia 9 de novembro, o Samvis atendeu sete vítimas de violência sexual, sendo seis de Teresina e uma do interior; seis delas com até 15 anos. Uma destas vítimas estava gestante: uma jovem de 20 anos que teria sido abusada por alguém da própria família no interior.
“Só em 2021, estamos tendo uma média de 1,83 vítima por dia, um patamar semelhante a 2020. São quase duas mulheres ou meninas abusadas diariamente no Piauí e a gente sabe que apenas 10% daquelas que sofrem violência sexual de fato denunciam. Têm delas que só denunciam porque não têm mais como esconder uma gravidez causada por abuso, por exemplo”, explica Maria Castelo Branco.
Denúncias caíram 40% no período mais crítico da pandemia
No período mais crítico da pandemia, de março a julho de 2020, o Samvis detectou uma queda de 40% nas denúncias de violência sexual que recebeu em comparação com os meses de setembro a dezembro, quando houve flexibilização das regras da quarentena. A coordenação do serviço atribui este evento ao medo das pessoas de saírem de casa e irem até uma unidade policial para formalizar um Boletim de Ocorrência e também ao próprio fato de vítimas e agressores terem passado a conviver mais diretamente por conta do isolamento, o que pode ter influenciado em um silêncio maior por parte de quem sofria a violência.
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Em 2021, comparado com 2020, já houve um aumento mais acentuado nas denúncias recebidas pelo Samvis. Em agosto de 2020, foram somente 30 denúncias. Em agosto de 2021, foram 57. Em setembro de 2020, o Samvis recebeu 40 denúncias e, em setembro deste ano, 56. Em outubro de 2020, foram 32 denúncias, um número que subiu para 47 em outubro de 2021. E somente nos 10 primeiros dias de novembro deste ano foram atendidas 16 vítimas de abuso sexual pelo serviço.
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A coordenadora do Samvis faz um apelo para que as pessoas denunciem os casos de abuso sexual e contribuam para que este tipo de violência não passe impune nem perdure.
“É preciso que as mulheres denunciem, é a primeira coisa que precisamos estimular: que as denúncias sejam feitas para que as crianças e adolescentes não permaneçam traumatizadas por toda sua existência. É preciso que as médicas que atendam nos postos periféricos chamem a polícia, chamem o conselho tutelar quando estiverem diante de um caso de abuso. O Estatuto da Criança e do Adolescente diz que a notificação deve ser compulsória, então denunciem. Vizinhos, psicólogos, professores, a comunidade inteira, todos têm que estar envolvidos nesta rede de proteção”, finaliza Maria Castelo Branco.
O sSamvis funciona na Maternidade Dona Evangelina Rosa, em Teresina - Foto: O Dia
O que é o Samvis
O Serviço de Atenção à Mulher Vítima de Violência Sexual (Samvis) é um serviço estadual que segue as normas do Ministério da Saúde para atendimentos de casos de violência sexual contra a mulher. Ele funciona desde 2004 na Maternidade Dona Evangelina Rosa (MDER), em Teresina, e reúne o atendimento pericial e o atendimento de saúde para as vítimas deste tipo de crime. Antes da criação do Samvis, toda a parte de medicina legal em mulheres que sofriam violência sexual no Piauí era feita no IML.
Dentre os serviços oferecidos pelo Samvis estão: coleta de vestígios, exame de espermatozoide, ultrassonografia, exames de Beta HCG, suturas em casos necessários, e internações. Também são ofertados medicamentos profiláticos de urgência, realização de testes sorológicos para saber se a vítima está ou não contaminada com alguma DST e o encaminhamento para o Hospital de Doenças Infectocontagiosas (HDIC), onde a mulher recebe toda a profilaxia contra o HIV.
O Samvis funciona nas instalações da Maternidade Dona Evangelina Rosa, na Avenida Higino Cunha, 1552, bairro Cristo Rei, e pode ser acionado pelo número (86) 3228-1053.