A Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Piauí vai acompanhar de perto as investigações do assassinato da menina Émile Caetano, morta a tiros durante uma abordagem feita por uma equipe do 5º Batalhão da Polícia Militar, na madrugada de terça-feira (26), na Avenida João XXIII, zona leste da capital.
O advogado Marcelo Mascarenhas, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PI, afirma que o procedimento adotado pelos policiais foi desastroso, mas é respaldado por um discurso de violência difundido por muitas pessoas, e, inclusive, por parte da imprensa, sobretudo em programas policiais.
O advogado Marcelo Mascarenhas, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados Seccional Piauí (Foto: Divulgação / OAB-PI)
"A OAB observa que a atuação violenta da Polícia é reflexo do discurso de uma sociedade que autoriza a Polícia a agir com violência. A grande questão do debate que a gente faz em torno dos direitos humanos é justamente para que a Polícia aja com moderação, porque quando a Polícia é abusiva, age com violência ou com excesso de força, mais cedo ou mais tarde um inocente é vítima, que foi o que aconteceu com essa criança que foi assassinada ontem [terça-feira]. E a Polícia age assim autorizada pela sociedade, que acha que o excesso de força pune o criminoso", pontua o advogado.
Mascarenhas afirma que a OAB-PI vai cobrar uma punição exemplar para os responsáveis, e alerta que este não foi um caso isolado no Piauí. "Têm ocorrido muitos casos de abordagens equivocadas. Muitos casos de abordagens violentas. Vez por outra a gente tem recebido denúncias a esse respeito. Recentemente, teve um caso de outra família que foi alvo de tiros efetuados pela Polícia. E os casos de abordagens individuais em que a Polícia, ao fazer a revista pessoal, age com violência, agredindo e ofendendo a pessoa abordada. Essas são denúncias que frequentemente chegam à Comissão de Direitos Humanos", afirma Marcelo Mascarenhas.
O presidente da comissão afirma que a OAB-PI vai iniciar um diálogo com o Comando-Geral da Polícia Militar para cobrar medidas que possam ser adotadas no sentido de "humanizar" as abordagens policiais, de maneira que elas fiquem mais eficientes e menos violentas.
A investigação da Polícia Civil e as perícias feitas no local da ocorrência e nas armas devem apontar quantos PMs efetuaram os disparos contra a família, bem como de qual arma saiu o projétil que atingiu fatalmente a criança. O advogado acredita que será fácil comprovar que houve dolo eventual no caso, pois quem efetuou os disparos assumiu o risco de matar quem estava dentro de veículo.
Dois PMs fizeram a abordagem, mas, a partir das informações iniciais coletadas, a Polícia Civil acredita que apenas um deles efetuou os disparos.
Para auxiliar na apuração do crime, a Delegacia de Homicídios também solicitou da PM-PI as imagens do sistema de monitoramento feitas no trecho onde o fato aconteceu, na Avenida João XXIII. E o responsável pelos tiros pode ser indiciado por homicídio qualificado, tendo em vista que a vítima - uma criança - não teve condições de se defender.
Policiais militares ainda não foram apresentados à Delegacia de Homicídios pela Corregedoria
O delegado Francisco Baretta afirma que, até por volta do meio-dia desta quarta-feira, a Corregedoria da PM-PI ainda não havia apresentado os dois PMs à Polícia Civil, embora o pedido de apresentação tenha sido encaminhado ainda na terça-feira pelo delegado Higgo Martins ao coronel Sérgio Moura Lopes, corregedor da PM-PI.
O delegado Francisco Costa Baretta (Foto: Ana Paula Diniz / Arquivo O DIA)
"Não sei se por problema logístico ou por outro empecilho, mas eles não foram apresentados. Hoje [quarta] eu conversei com o delegado Higgo e solicitei que o delegado fizesse uma reiteração no sentido de que a Corregedoria apresente os policiais para serem ouvidos. Não sendo apresentados, nós vamos tomar as providências que a lei permite", afirma Baretta.
O delegado afirma que a investigação está bem adiantada, e que diversas testemunhas estão sendo ouvidas. Segundo Baretta, os depoimentos estão corroborando a versão dada por Dayanne Caetano, mãe da menina assassinada.
"Já colhemos imagens da redondeza e está sendo realizada uma perícia no veículo. Alguns estojos de arma de fogo foram recolhidos no local pelos peritos, e eu acredito que nos próximos dias nós já temos uma definição de toda a dinâmica do crime. ", destaca do delegado.
Há fortes indícios de que o veículo da família estava parado quando os disparos foram efetuados, ou seja, os tiros não ocorreram durante uma perseguição, o que agrava ainda mais a situação do autor dos tiros. Para esclarecer esse detalhe, a Perícia Criminal está avaliando a trajetória percorrida pelos projéteis e a altura em que a arma estava quando os disparos foram efetuados.
Os policiais são alvos de dois inquéritos, um aberto pela Polícia Civil e outro pela própria PM.
"Imediatamente após tomar conhecimento do fato, eu determinei a abertura de um inquérito policial pela Delegacia de Homicídios. Eu tomei conhecimento de que os dois policiais envolvidos foram autuados na Corregedoria da Polícia Militar, mas independente disso eu determinei a abertura desse inquérito, porque a PM tem competência para instaurar inquérito policial militar, que investiga crimes militares. O crime de homicídio doloso, que é um crime contra a vida, é um crime comum, de acordo com a Constituição. Seu julgamento é atribuição do tribunal popular do júri e a investigação fica a cargo da Polícia Civil", afirma Baretta.
Políticos e imprensa têm culpa, opina advogado
O advogado Marcelo Mascarenhas reforçou que o discurso de violência, segundo o qual "bandido bom é bandido morto", tem sido propalado de forma preocupante no país, tendo o aval de políticos populistas e de alguns jornalistas, o que acaba potencializando os efeitos nocivos desta visão distorcida.
"Muitos políticos e alguns meios de comunicação social têm falado abertamente: 'A Polícia tem que bater mesmo. A Polícia tem que matar. A Polícia não pode pegar leve com bandido'. E esse discurso, que fica sendo reproduzido, é que leva a fatos como esse, em que a Polícia, agindo com excesso de força, acabou vitimando uma criança de nove anos, e quase vitimou outras duas crianças e seus pais, que também estavam dentro do veículo, numa abordagem totalmente desastrada, irresponsável e desproporcional", afirma o advogado.
Mascarenhas enfatiza que os policiais envolvidos na ocorrência deveriam ter adotado o procedimento padrão da Polícia, que é ensinado nas academias de formação de militares. "Deveriam ter pedido reforço e feito o acompanhamento do veículo, sem efetuar disparos. Este é o procedimento ensinado nas academias, mas no dia a dia, na prática, incentiva-se outro tipo de comportamento. De forma alguma deveria ter sido efetuado disparos sem antes se identificar quem estava dentro do veículo. Não se pode fazer nenhum disparo sem se verificar que os ocupantes do veículo estão armados ou oferecem risco aos policiais. O correto seria parar o veículo, pedir que as pessoas descessem com as mãos à mostra e aguardar. Se a pessoa sair do veículo e os policiais identificarem que ela está armada, ou se ela resistir, aí os policiais devem reagir na medida da agressão sofrida. Mas já chegar disparando contra uma família dentro de um carro, que não representa qualquer ameaça, é um procedimento absolutamente equivocado, em todos os sentidos", acrescenta o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PI.
Quem fura bloqueio policial pode ser autuado por tentativa de homicídio e direção perigosa
Está em tramitação na Câmara Federal um projeto de lei que altera o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) para tornar crime a prática de furar bloqueio policial.
O texto do PL, apresentado pelo deputado Cabo Sabino (PR-CE), propõe uma pena de 3 meses a 1 ano de detenção, além de multa e de suspensão ou proibição do direito de dirigir.
De acordo com o delegado Francisco da Costa Baretta, atualmente, as pessoas que furam bloqueios policiais, dependendo das circunstâncias, já podem responder por tentativa de homicídio e direção perigosa, tendo em vista que a atitude coloca em risco a vida dos policiais e das demais pessoas que estão próximo ao bloqueio. Além disso, também podem responder por desobediência e por dano ao patrimônio público, caso ferramentas usadas pelos policiais ou bens públicos sejam danificados na fuga.
Baretta lembra que em Teresina, anos atrás, um PM foi morto atropelado por um motorista que furou uma blitz que estava sendo realizada na Avenida Barão de Gurgueia. Na ocasião, ele foi indiciado por homicídio doloso (quando há a intenção de matar).
No caso ocorrido na terça-feira, na Avenida João XXIII, o delegado Baretta afirma que o pai da menina morta não deve ser indiciado por qualquer crime, pois as informações já coletadas pela Polícia indicam que o motorista não furou uma blitz, mas apenas percorreu um pequeno trecho antes de parar seu veículo, após uma breve perseguição feita pelos PMs.
"Pelo que eu observei e pelo que foi relatado até agora, não teve bloqueio nenhum. Apenas ele estava transitando quando os policiais o avistaram e acharam que se tratava de um veículo suspeito, iniciando uma perseguição. Os policiais ligaram a sirene e o pai ainda transitou um pouco, porque o casal pensou que poderiam ser multados, já que a mãe estava com uma das crianças no colo, sem a cadeirinha. Mas a esposa do motorista logo mandou que ele parasse. Ele parou e a viatura parou logo atrás, mas um dos policiais já desceu efetuando disparos contra o carro", detalha Baretta.
O delegado considera que os policiais militares cometeram um erro grosseiro, e não poderiam ter agido desta maneira mesmo que estivessem, de fato, perseguindo criminosos.
"O procedimento feito pelos policiais foi uma aberração, um erro grosseiro. Mesmo que fossem bandidos, os PMs teriam que perseguir e pedir reforço policial. Quando o veículo parasse os PMs deveriam dar o comando de voz para os ocupantes saírem do veículo e deitarem no chão com as mãos para cima. Inclusive, é prevista até a posição que a viatura deve ficar, para garantir a proteção aos PMs. Eles não poderiam chegar atirando", conclui Baretta.