Era tarde de quarta (8) quando um caminhão de som da associação dos policiais civis do Espírito Santo estacionou no meio da via que dá acesso ao IML de Vitória para impedir a passagem de mais carros funerários.
A justificativa era evitar um caos maior no prédio do instituto médico legal, onde equipes de legistas se desdobravam para dar conta da quantidade atípica de corpos e de parentes de vítimas que brigavam entre si – só os assassinatos da antevéspera eram 31 especificamente nessa seção, contra média de 3 por dia.
Nas ruas, estava no ápice uma onda de crimes em meio ao motim de PMs : foram registrados pelo Estado 143 homicídios entre os dias 4 e 13, 276% mais que os 38 do mesmo período do ano passado.
Levantamento com base nos dados oficiais divulgados nesta semana mostra que quase metade dos assassinatos se concentrou em três municípios no entorno da capital: Serra, Vila Velha e Cariacica, marcadas por regiões pobres periféricas e que somam um terço da população do Estado.
Moradores tiram fotos com os militares que estão trabalhando na segurança (Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil)
Investigadores ouvidos pela Folha e autoridades da segurança pública citam três hipóteses que podem explicar a disparada das mortes: 1) ação de gangues que disputam pequenos pontos de venda de droga e aproveitaram a ausência de PMs para cobrar dívidas e ganhar território; 2) crimes cometidos por policiais encapuzados, por vingança ou para espalhar terror; 3) atuação de grupo de extermínio organizado, com ou sem ligação com militares.
O perfil dos mortos, conforme dados do Sindicato dos Policiais Civis muito semelhantes aos registros oficiais, aponta que 67% eram pardos, 18%, negros, e 15%, brancos. A maior parte das vítimas, diz, tinha de 17 a 22 anos.
O motim dos PMs por reajuste salarial ficou marcado pela ação de mulheres e parentes deles na frente dos batalhões –tentativa de evitar a exposição dos militares, proibidos de fazer greve.
Com a disparada de homicídios, saques e assaltos, tropas do Exército e da Força Nacional foram enviadas para as ruas –concentradas em Vitória, que reúne bairros mais nobres e maior índice de desenvolvimento humano.
O governo anunciou processos para punir mais de 700 militares, incluindo a ameaça de expulsão, e a mobilização acabou perdendo força no último final de semana.
RIVAIS
No IML de Vitória, para onde eram encaminhadas a maioria das vítimas de cidades vizinhas, uma equipe de manutenção correu para arrumar geladeiras com defeito. Cada exame era feito em até 20 minutos, quando normalmente podem durar até duas horas.
Na sala de espera, houve briga de famílias cujos parentes pertenciam a grupos criminosos rivais. Policiais civis foram ao local com duas escopetas para conter os ânimos. "O tumulto era generalizado, na sala de necrópsia, na sala de lesões corporais", diz Cassio Laiber, legista e chefe do Departamento Médico Legal (com é chamado o IML local).
O sindicato dos policiais civis avalia que a disputa entre familiares relatada por legistas explicita a disputa entre grupos rivais que controlam a droga em pequenas áreas.
Foi assim que um sobrinho de Ana (nome fictício) morreu no dia 9. O rapaz de 20 anos estava em um ponto de venda de drogas, em área pobre de Vitória, quando foi atingido por quase 20 tiros, segundo a tia. "Era um rapaz tranquilo. Mas há quatro meses começou a se envolver com drogas", afirma Ana, que diz conhecer os autores do crime –jovens traficantes ligados a uma gangue. "Todos aqui sabem quem são e ninguém faz nada", declara.
O Departamento Médico Legal diz que as mortes deste mês foram basicamente por arma de fogo (na maioria de calibre.380 e 38), mas sem sinais aparentes de tortura.
MILITARES
O governo Paulo Hartung (PMDB) também investiga a participação de PMs devido à disparada dos homicídios em meio ao motim policial.
Para investigadores, os relatos de mortes causadas por homens encapuzados, a queima de ônibus na Grande Vitória e um assalto ao turístico Convento da Penha são condizentes com uma articulação maior que a de criminosos comuns do Estado.
"Vamos fazer também um pente fino em relação a todos os homicídios. Há mais de 30 denúncias na Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos de crimes cometidos por policiais nesse período. Se houver participação de militares ou até mesmo de milícias, elas serão combatidas", afirmou André Garcia, secretário da Segurança do Estado.
Há denúncias da ação de grupos de extermínio, que podem ou não ter ligação com PMs. "O que definirá a presença de militares é a investigação a ser conduzida a partir de agora", afirma a ouvidora nacional, Irina Bacci.
O Espírito Santo chegou a reduzir as mortes violentas nos últimos anos, embora continuasse no ano passado com um índice de 37,4 por cada 100 mil habitantes –acima da média nacional (de 28,6).