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A Covid-19 e a "œCultura da litigância"

Yago de Carvalho Vasconcelos. Advogado especialista em Direito Imobiliário e Direito Processual Civil. OAB/PI 14.085

07/05/2020 13:03

Como é de conhecimento geral, as medidas de contenção da pandemia de COVID-19 vêm impactando dramaticamente toda a teia econômica, de sorte que muitos não estão conseguindo adimplir suas obrigações contratuais, o que tende a desencadear um número colossal de conflitos, que ameaça colapsar o já saturado Poder Judiciário, no qual muito pouco se poderá investir nos próximos anos, em decorrência da própria crise.

Felizmente, toda grande crise propicia o rearranjo das instituições, na medida em que expõe a inconsistência e obsolescência do establishment. Como há mais de um século observou Leon Duguit, “o Direito é muito menos a obra do legislador que o produto constante e espontâneo dos fatos [de forma que] sob a pressão dos fatos, das necessidades práticas, se formam constantemente instituições jurídicas novas”. 

Essa transformação, imposta pela pressão implacável dos fatos, é o que precisa ocorrer em relação à “cultura da litigância”, ainda dominante em nossa consciência coletiva, por força da qual vemos na judicialização a forma natural e prioritária de resolução de conflitos. Aliás, esse pensamento distorcido se faz sentir antes mesmo da formação do conflito, quando os contratantes se portam como adversários, agindo de forma sorrateira e buscando extrair do outro o máximo possível em proveito próprio, sempre antevendo o embate judicial que marcará o fim da relação negocial. 

É chegado o momento de abandonarmos esse paradigma caquético, sob pena de excedermos por muito a capacidade do Estado de pacificar os conflitos, em prejuízo da retomada econômica que todos devemos perseguir com máximo afinco, nos próximos anos. E esses não serão anos fáceis. 

A necessidade de investirmos em métodos alternativos de solução de conflitos revela-se ainda mais premente dadas as peculiaridades da onda de conflitos que eclodirá na esteira da pandemia. Como recentemente destacou o Dr. João Otávio de Noronha, Ministro do STJ, ao tratar da revisão de contratos afetados pelas medidas de combate ao coronavírus, "este momento exige muita negociação. A revisão não é panaceia para todos os desequilíbrios contratuais; depende da atividade, do setor, dos fatos que envolvem a relação contratual. Nós precisamos entender que a revisão dos contratos é singular, deve ser vista caso a caso". Na mesma oportunidade, o Des. Silvio Venoso adicionou: "todos os princípios do Código Civil, do Código de Defesa do Consumidor, precisam se amoldar à situação concreta, não sendo as mesmas soluções para todos os casos". 

Resta nítido, portanto, que estamos perante desafio nunca antes enfrentado, eis que teremos conflitos “ultramassificados” que demandarão soluções particularizadas. De tal arte, nem mesmo o elogiável sistema de precedentes obrigatórios inaugurado pelo Novo Código de Processo Civil – que permite a aplicação de soluções padronizadas a casos semelhantes e vincula as instâncias inferiores à jurisprudência dos Tribunais Superiores, imprimindo unicidade e celeridade aos julgamentos – será suficiente para amortecer os impactos de uma corrida generalizada aos tribunais. 

É obvio que as partes não podem ser obrigadas a compor, pois isso esvaziaria o direito fundamental de acesso à Justiça e, por tabela, todos os outros direitos, excluídos que estariam da tutela jurisdicional. O que se sustenta é o estimulo ao exercício racional e moderado desse direito fundamental, que deve ser tratado como última alternativa de resolução de conflitos. Para que isso seja possível, é de extrema importância a atuação dos advogados, como condutores das tratativas entre os contendores e conhecedores das alternativas negociais que melhor atendem aos interesses de ambas as partes. 

Não se trata de simples política de renúncia a direitos, em prol de entendimentos, mas de se adotar postura transparente, coerente e colaborativa antes, durante e após o término do contrato. Aliás, ao celebrarem um negócio as partes assumem, implicitamente, um dever de cooperação mútua (art. 422 do Código Civil), que as impõe - não só ética, mas também juridicamente – a adoção das medidas que estiverem ao seu alcance para preservar o negócio que firmaram, ainda que circunstâncias externas o estejam afetando, razão pela qual o devedor que esteja impossibilitado de pagar certa prestação, seja por qual motivo for, deve noticiar imediatamente tal fato ao seu credor que, à sua vez, deve abrir diálogo, deixando claras suas intenções, diante da situação que lhe foi exposta. 

É bem verdade que o ineditismo da conjuntura que estamos atravessando representa dificuldade adicional para que os contratantes cheguem a um acordo, pelo menos neste momento, dado o grau de incerteza sobre as repercussões jurídicas da pandemia. De fato, há profunda dúvida sobre como os tribunais irão tratar o tema, o que gera grave insegurança jurídica. Se as partes não sabem ao certo o direito que possuem, ficam ainda mais distantes de encontrar um denominador comum. 

Bem por isso, na maior parte dos casos, talvez a melhor estratégia de momento seja aguardar o desenrolar dos fatos, até que haja elementos mais concretos para balizar uma composição entre as partes, tendo à vista que um acordo firmado precipitadamente, já à luz dos efeitos da pandemia, não poderá ser revisto no futuro. Sem embargo, vale advertir que nem todos são os casos em que é recomendável aguardar – como, por exemplo, quando o bem dado em garantia pelo devedor está na iminência de ir a leilão extrajudicial – daí a importância de contar, já neste momento, com a assessoria de advogado especializado, que estará apto a orientar o interessado sobre como e quando agir. 


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