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Rastros de dona Purcina

Quando escrevi A Matriarca dos Loucos, afirmei: nenhuma vida cabe em um livro, mesmo que seja a vida de uma simples doceira do sertão do Caracol

25/11/2018 08:26

Na medida do possível, tentei registrar, no livro, o que de mais significativo encontrei na trajetória de dona Purcina, mas as pessoas  que a conheceram sempre me surpreendem com novas histórias. Há pouco tempo, eu e dona Dezinha entramos numa loja em Anísio de Abreu, sertão do Piauí, para comprar um vestido para uma tia querida. O dono do estabelecimento nos observava com vivo interesse. De repente, não se conteve e perguntou à minha irmã se, porventura, éramos parentes de dona Purcina. Quando a Dezinha lhe disse que éramos filhos, o cidadão contou-nos uma história que  traduz  bem o espírito da velha.

“Quando eu trabalhava como ambulante em São Raimundo Nonato, sempre que subia para as bandas do Gavião ou Altamira, parava na casa de dona Purcina para tomar um copo d’água  ou um xícara de café e prosear um pouco. Uma tarde, depois de andar muito, sem vender nada, parei na casa dela para descansar as pernas e o juízo. Ao me ver tão desanimado, perguntou: ‘Meu filho, você já vendeu alguma coisa hoje?’ Diante da resposta negativa, afirmou: ‘Pois eu vou lhe comprar nem que seja um pente pra você não perder o gosto por seu negócio’. Em seguida,juntou umas moedinhas e me comprou um pente de plástico”. Visivelmente emocionado, arrematou: “Ela me ajudou a acreditar que valia a pena continuar. E aqui estou”. Limitei-me a olhar para a irmã amada, também emocionada, e comentar: veja a responsabilidade  que é sermos filhos da matriarca...

Lembrei-me dessa história ao passar pela Avenida Nossa Senhora de Fátima, no início da semana, ao meio-dia. Sol de cozinhar o quengo. De repente, vejo um ambulante tentando proteger-se da canícula à sombra de um poste. O cidadão, suado até a alma, exibia numa tabuleta suas quinquilharias: isqueiros, canetas, tiaras, pentes e outros “inuntensílios”, como diria o poeta. Era um rapaz bem jovem, pálido e muito triste. Mal o semáforo fechou, ele saiu da nesga de sombra e, sem muito entusiasmo, passou a circular entre automóveis, todos com os vidros levantados. O cidadão mais parecia um espantalho desengonçado com suas bugigangas  made in china. Seguramente, ninguém ali estava interessado em comprar nada.

Fiz um gesto com o dedo, ele aproximou-se, pedi-lhe duas esferográficas e paguei com uma cédula de dez. O moço me olhou com aquela cara de “o senhor-não-tem-trocado?”. Nem tive tempo de lhe dizer que podia ficar com o troco. Atrás de mim, um celerado, com a pressa de quem está levando a mãe à maternidade, disparou uma buzinaço  capaz  de derrubar as muralhas de Jericó. Sem a menor pressa, segui na avenida, com a nítida sensação de que, de alguma lugar insituável, a velha matriarca  me  sorria feliz... 

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