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O inferno é logo ali

Publicado na coluna Echos da Chapada, no caderno Metrópole, do jornal O Dai

03/03/2019 06:36

Não bastassem as agruras da escola, dona Purcina resolveu matricular-me na aula de catecismo. Até então, tudo o que eu sabia de Deus é que, às vezes, Ele mandava chuva. No sertão, rezava-se basicamente para chover.  Logo na primeira aula, um susto: a freirinha, branca com uma osga albina, desenhou na lousa um estranho relógio: os dois ponteiros indicavam duas palavras: nunca e sempre. Com um fiapo de voz, a irmãzinha explicou: “Este é o relógio do inferno. Um ponteiro  nos lembra: nunca sairás daqui; o outro nos diz: sempre estarás aqui”. Em seguida, começou a descrever o inferno com uma riqueza de detalhes que, no meu entendimento, revelava que ela já estivera lá...  Apavorado, saí correndo para ir ao banheiro.

Na saída da aula, fez mais uma advertência: “O diabo é um cachorro louco, amarrado numa corrente de ferro. Quem não quiser ser mordido por ele, basta não se aproximar muito”. Se a intenção era nos tranquilizar, pelo menos em mim, o efeito foi apavorante. Como a freira tísica (depois, fiquei sabendo) não nos disse a extensão da corrente, tornei-me um menino acovardado. Antes de qualquer reinação, mesmo as mais simples, eu me perguntava: será se não estou muito próximo do torto?

Pior que as aulas de catecismo só a confissão para a primeira comunhão. O velho padre espanhol cheirava mal e insistia em saber se eu já pecara “contra a castidade”. Como eu não sabia o que era castidade, balbuciei um acovardado não. Ele insistiu: “Não minta! Não minta! Mentir também é pecado. Além disso, Deus tudo vê, tudo sabe, tudo pode”. Cumpri a penitência que me foi imposta e me retirei arrasado. Agora, além de manter prudente distância da corrente do diabo, não tinha como fugir da vigilância de um deus bisbilhoteiro...

No dia da primeira comunhão, tínhamos de ir, em jejum, para a igreja matriz. Era preciso estar “limpo” para receber a hóstia. Entramos na igreja cantando: “Vamos todos ao sacrário/que Jesus chorando está/mas ao ver tantas crianças,/bem contente ficará...” Depois da comunhão, fomos brindados com uma xícara de chocolate quente e um pedaço de bolo.  A mistura não me fez bem: tive de correr ao banheiro para evitar um vexame maior. Vomitei tudo e mais o que não comera. Voltei para casa, destroçado: eu cometera o sacrilégio de regurgitar o Cordeiro de Deus. Pensei comigo: eu não estava preparado para recebê-lo. Nunca me senti tão perto do troncho...

Quando comecei a estudar a história do Brasil, me dei conta do estrago que a catequese provocou na vida dos índios. De repente, perderam o paraíso onde viviam livres e sem pecados e ganharam um inferno recheado de horrores.  A pior parte: a prática continua com a ação de “missionários” de todos as vertentes religiosas.

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