No último dia 11 de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou ilegal a abordagem policial e a revista pessoal motivadas por raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física. Reunidos em Plenário, os ministros entenderam que a busca pessoal sem mandado judicial deve estar fundamentada em indícios de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que possam representar indícios da ocorrência de crime.
A decisão foi tomada durante o julgamento de um Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em favor de um homem negro que havia sido condenado a dois anos de prisão por tráfico de drogas. A Defensoria alegou que a prova seria ilícita, porque a abordagem policial teria ocorrido unicamente em razão da cor da pele do suspeito.
A condenação foi mantida porque os ministros, em sua maioria, entenderam que a revista foi motivada porque o suspeito tinha atitude que indicava a prática do tráfico de drogas. No entanto, a situação levantou o debate sobre até que ponto a cor da pele é capaz de motivar uma abordagem policial. No entendimento do presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, discutir a questão é “enfrentar um racismo estrutural que exige um posicionamento de todos e cada um dos brasileiros”.
Esta realidade pode ser traduzida em números. De acordo com o relatório “Pele Alvo: a cor que a polícia apaga”, produzido pela Rede Observatório da Segurança Pública, o Piauí teve 24 mortes de pessoas negras decorrentes de intervenção policial em 2021. Para efeito de comparação, foram oito mortes de pessoas brancas na mesma situação e 20 mortes de pessoas pardas. A porcentagem de pessoas negras mortas pela polícia em 2021 no Estado chegou a 75% naquele ano.
Pensando nisso, a Secretaria de Segurança vai elaborar protocolo de abordagem para a população negra. Foi criada no último dia 18 de abril pela Secretaria de Segurança Pública a Coordenação de Igualdade Racial, dentro da Superintendência de Cidadania e Defesa Social. O órgão vai propor, coordenar e acompanhar as políticas públicas para eliminação de qualquer forma de discriminação racial, seja ela coletiva ou individual, e garantir a igualdade para a população negra no Piauí.
Entre as ações previstas está a elaboração de um protocolo de abordagem específico para a população negra. Este protocolo será desenvolvido em conjunto com a Secretaria Estadual de Assistência Social e Cidadania (SASC) com a participação das forças de segurança (Polícia Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros), Ministério Público e Defensoria Pública do Estado.
Quem explica é a superintendente de Cidadania da SSP, coronel Elizete Lima. “A SSP e a SASC vão capitanear a elaboração deste protocolo, tal qual fizemos com a população LGBT, e também para outros grupos vulnerabilizados. Vamos também ter um seminário sobre segurança pública e população negra com o objetivo de sensibilizarmos os integrantes das forças estaduais de segurança em relação a esta temática”, pontuou a coronel.
Este protocolo está em fase de estudo para sua elaboração e ainda não possui uma data para publicação.
Números são uma amostra do racismo estrutural
Para a socióloga Maria D’Alva Ferreira, membro do Núcleo de Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes e Jovens (NUPEC-UFPI), os números são uma amostra clara do racismo estrutural fomentado pelo próprio Estado e que tem como alvo principal o jovem negro e morador da periferia. Maria D’Alva lamenta que seja necessária uma lei para expressar algo que deveria ser natural.
Segundo os estudos do NUPEC, aqui em Teresina há um aumento no número de abordagens motivadas pela cor da pele à medida que se caminha em direção à periferia. As regiões da Grande Santa Maria da Codipi (zona Norte) e da Vila Irmã Dulce (zona Sul) são as que mais preocupam neste sentido.
Para Maria D’Alva, esse é um exemplo da seletividade da ação direta do Estado. Professora da UFPI, ela recorda o episódio no qual um aluno seu foi abordado pela polícia quando descia do ônibus ao chegar em seu bairro, na zona Sul. “Ele veio conversar comigo dizendo ‘professora, eu coloquei o pé na rua e a viatura veio me abordando como se eu tivesse cometido um crime. Eu tinha acabado de chegar, vindo da universidade. Passei o dia assistindo aula, tinha o material do curso na mochila’. Aí você questiona o perfil deste jovem: negro e de trança no cabelo, morador da periferia. Se não for um racismo, é o quê afinal? ”, comenta a socióloga.
Esse perfilamento racial em Teresina também aparece nos números: pelo menos 83% das mortes decorrentes de intervenção policial na capital em 2021 tinham como vítimas jovens negros. Em seguida no número de casos semelhantes aparecem cidades como Pedro II, Piripiri, Buriti dos Lopes, Picos, Floriano, Baixa Grande do Ribeiro, Avelino Lopes e Curimatá. O dado consta em relatório do Observatório da Segurança Pública.
O documento diz que a maior concentração desses casos se dá em Teresina porque “é aqui que existe o maior contingente policial”. O relatório destaca ainda que “grande parte das ações de policiamento acontecem em ambientes periféricos onde se pode notar a falta de infraestrutura, educação, saúde e pessoas em situação de maior vulnerabilidade”.
Pré-julgamento e predisposição ao crime
Embora a abordagem motivada pela raça, sexo, orientação sexual e cor da pele tenha sido considerada ilegal no Brasil, o Supremo ainda não definiu quais serão os mecanismos de controle para que esta medida de fato passe a valer. Especialistas falam na necessidade de mais preparação por parte das forças de segurança e implantação de políticas públicas voltadas para a conscientização sobre o racismo.
No entendimento da socióloga Maria D’Alva Ferreira, os jovens, principalmente os negros, são vítimas de um pré-julgamento de que são bandidos mesmo sem apresentarem qualquer atitude suspeita. Este pré-julgamento, ela afirma, parte sobretudo da polícia e da forma como a sociedade enxerga esta parcela da população. Isso, segundo a especialista, é fruto de uma formação carente de conscientização racial.
“Isso infelizmente é reforçado todos os dias na mídia. A ideia de que por que é jovem, negro e mora na periferia, tem uma predisposição ao crime. Já há um pré-julgamento de que eles são bandidos. A sociedade considera isso normal e naturaliza”, dispara Maria D’Alva. Para ela, é preciso analisar, antes de tudo, o que há entre a intenção da abordagem e a ação por parte da polícia. Uma ação, que, segundo ela, parece ser seletiva.
“O negro e pobre morador da periferia é o perfil de uma palavra que é muito usada pela polícia e a sociedade: o perfil do ‘vagabundo’, do criminoso. Isso por si só já cria um potencial muito grande de relativizar qualquer ação direcionada a esse jovem, mesmo ele não tendo cometido nenhum crime ou ato infracional”, finaliza Maria D’Alva Ferreira.
O Portalodia.com procurou a Secretaria de Segurança Pública do Piauí para saber como é ocorre a preparação dos policiais para as abordagens de rotina no policiamento ostensivo.
A Superintendência de Defesa Social e Cidadania da Secretaria de Segurança Pública informou que realiza capacitações continuadas com seu efetivo policial na questão das abordagens. A chefe da Superintendência, coronel Elizete Lima, esclareceu que ainda não há dentro dos cursos de formação uma disciplina voltada especificamente para a população negra, mas que existe a disciplina de Direitos Humanos dentro da qual se aborda a temática de prevenção ao racismo e do respeito a todas as formas de religião.
“Tive que fazer um BO para mostrar que era vítima antes que fosse abordado pela polícia”
Foi na zona Sul de Teresina que o social media Vinícius Nascimento passou por uma situação a que classificou como triste e constrangedora. Há cerca de um mês, ele esteve com um amigo em um mercado no Residencial Parque Sul, onde mora, e foi vítima de racismo. Vinícius conta que estava do lado de fora do estabelecimento, mexendo no celular e observando a movimentação enquanto aguardava que o colega, Weslley Santiago, retornasse.
Em determinado momento, Weslley foi até ele perguntar se havia algo que ele queria comprar. Vinícius negou e o amigo, então, retornou para o interior do estabelecimento. De lá, os dois seguiram para a casa do social media, mas horas depois, foram surpreendidos por vídeos circulando pelas redes sociais em que eles apareciam sendo chamados de assaltantes. As imagens eram de câmeras de segurança do mercado, seguidas de áudios da proprietária do local dizendo que os dois estavam planejando roubá-la.
“Nossas imagens estavam em grupos de whatsapp, as pessoas afirmando que nós éramos assaltantes e procurados. Fiquei sem reação e triste ao mesmo tempo, porque nem eu nem o Weslley tínhamos feito nada. Nós corremos imediatamente para a delegacia para registrar um BO dizendo que éramos vítimas antes que a polícia abordasse a gente. Só conseguíamos pensar nos riscos de sair na rua e sermos abordados sem nenhum respaldo. A gente sabe como são essas abordagens e ninguém iria pagar para ver”, afirma Vinícius.
O social media acrescenta que nenhuma das acusações feitas a ele e ao amigo tinham fundamento e acredita que a situação toda tenha sido motivada pelo pré-julgamento social de que “todo jovem negro na periferia é assaltante”. “Eu sou uma pessoa honesta, trabalhadora. Nós dois trabalhamos com nossa imagem nas redes, mas é triste saber que a mesma imagem que nós usamos no trabalho é vista com preconceito e desconfiança pelos outros”, finaliza Vinícius.
Combate ao racismo é uma construção social
Mais fiscalização tanto através das Secretarias de Segurança quanto através das demais entidades. Este é o caminho para começar o processo de desconstrução do estigma criado sobre o jovem negro morador da periferia. É o que afirma Francildo Monteiro, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PI. Em entrevista ao Portalodia.com, ele reforça que a ideia da marginalização está intrinsecamente ligada à cor da pele no Brasil e defende a construção de um debate mais amplo envolvendo todos os setores da sociedade civil e do Estado.
A Constituição de 1988 traz alguns dispositivos que conferem o direito à igualdade, como a Lei nº 12.288, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, defesa dos direitos étnicos individuais e coletivos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. A lei diz que é dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade independentemente da etnia ou da cor da pele.
Existe ainda a Lei nº 14.532, publicada em janeiro de 2023, que equipara a injúria racial ao crime de racismo. A pena se tornou mais severa com reclusão de dois a cinco anos, além de multa e sem pagamento de fiança. A nova legislação tornou a injúria racial crime imprescritível.
Para o representante da OAB-PI, as leis por si só não têm efetividade se não houver fiscalização de seu cumprimento e a conscientização da sociedade para a necessidade de uma mudança de postura. Francildo afirma que “leis penais em branco são como corpos errantes em busca de alma”, ou seja, precisam de algo para se tornarem completas, e esse algo é justamente maneiras de torná-la eficazes e efetivas.
O Piauí deu um passo significativo rumo à efetivação das políticas públicas de combate ao racismo. Em fevereiro deste ano foi sancionada a Lei Estadual nº 8.308, que torna obrigatória a inclusão na rede pública de ensino o estudo da História da África e a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o papel do negro na formação da sociedade. Francildo classifica a lei como “um passo importante na construção do cidadão”.
“Temos que trabalhar isso desde os primeiros anos de vida e não só nas escolas. Combate ao racismo é algo que deve vir de dentro de casa, do seio da família e que deve ser fomentado na escola e pela sociedade em geral. Nós temos inúmeras oportunidades de construir um cidadão que entenda que ele não está só no mundo, mas que tem seus semelhantes e que isso independe da cor, do credo, do gênero, da orientação sexual. Por que eu vou diminuir alguém que é igual a mim? É isso que as pessoas precisam se perguntar”, finaliza o representante da OAB.
Piauí já tem protocolo específico para abordagem ao público LGBTQIAP+
O STF decretou a ilegalidade da abordagem policial motivada não só pela cor da pele, mas também por questão de gênero e pela orientação sexual. O Piauí já havia se adiantado no tema e criado o próprio protocolo de abordagem envolvendo a população LGBTQIAPN+.
O documento estabelece que a Polícia Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros deverão garantir tratamento de acordo com a identidade de gênero declarada pela pessoa abordada. Isso inclui uso do nome social e dos pronomes adequados.
A portaria determina ainda que seja dado atendimento prioritário à população LGBTQIAP+ em na hora de registrar ocorrências policiais em qualquer unidade da Polícia Civil.
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