Nos últimos anos, a forma como encaramos a sustentabilidade mudou drasticamente. Ela deixou de ser uma escolha e se tornou uma necessidade. Essa mudança de mentalidade é impulsionada pela crescente preocupação com os impactos ambientais e sociais das atividades humanas. Em resposta a esse cenário, pessoas de todo o mundo têm se mobilizado por meio do empreendedorismo sustentável.
O surgimento de 'empresas verdes' está alinhado com o fortalecimento da bioeconomia, uma visão que combina a geração de riqueza econômica com a preservação dos ecossistemas e o bem-estar social. Considerado essencial para a preservação do futuro das próximas gerações, esse modelo movimenta globalmente cerca de US$ 2 trilhões e gera mais de 22 milhões de empregos, segundo dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD).
Frente às mudanças climáticas, a bioeconomia está ganhando cada vez mais relevância. A ideia é substituir o uso de energias fósseis por renováveis, como a solar e a eólica. O Brasil, que está no topo da cadeia de produção de biocombustíveis e energia limpa, pode ser um dos protagonistas na ascensão desse novo paradigma.
"Já produzimos energias renováveis e fomos pioneiros na criação do etanol, biocombustível produzido a partir da cana-de-açúcar, criado na década de 1790", explica Juliano Vargas, professor de Economia da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
No país, novos negócios sustentáveis estão surgindo especialmente no setor de empresas emergentes inovadoras - as famosas startups. Quando focadas na resolução de problemas socioambientais, são chamadas de startups de impacto. De acordo com o Startups de Impacto Report 2024, divulgado recentemente pelo Sebrae, o segmento tem forte presença nas regiões Norte e Nordeste, que juntas correspondem a 36% dessas iniciativas.
As informações mostram que mais da metade das startups concentram seus esforços em criar soluções para questões ambientais. Conhecidas como greentechs, elas visam mitigar problemas como a emissão de gás carbônico (CO2) e a má gestão de resíduos. A categoria registra crescimento desde 2021.
Outra problemática que buscam resolver é a inclusão social, principalmente de comunidades marginalizadas. Os dados apontam que uma das preocupações mais comuns é dar suporte a essas pessoas.
Acompanhando a tendência nacional, no Piauí, pequenos negócios estão unindo tecnologia e sustentabilidade para criar inovações que beneficiam a população e o meio ambiente. Um exemplo é a Ninho do Verde, uma startup que oferece serviços de compostagem, soluções sustentáveis e educação ambiental para pessoas, comunidades e empresas.
Fundada pelas irmãs Lígia e Núbia Rocha em 2021, a Ninho do Verde trabalha especialmente com a fibra de coco, transformando em produto sustentável o que antes seria descartado e passaria 10 anos se decompondo. Através de uma plataforma digital, a microempresa oferece produtos biodegradáveis e orgânicos, além de propagar conhecimento acerca da reciclagem e reutilização dos materiais.
A ideia surgiu quando Lígia passeava com o filho pelas ruas do Centro de Teresina, capital do Piauí, e tropeçou em cascas de coco espalhadas pelo chão. A cena chamou a sua atenção. “O coco é mesmo um lixo?”, ela se perguntou.
Foi o tropeço que trouxe a inspiração. “Nós já tínhamos o hábito de reciclar e separar os resíduos em casa. Começamos a estudar sobre o assunto e descobrimos que a casca do coco é muito eficiente no processo de reciclagem do lixo orgânico e na produção de adubo de alta qualidade. Decidimos então trabalhar com a compostagem e contribuir com a gestão de resíduos da nossa cidade”, conta Lígia.
Embora a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) preveja a compostagem como uma alternativa para o tratamento e destinação adequada dos resíduos orgânicos, essa prática ainda não é uma realidade no Piauí. O estado carece de uma gestão eficaz de resíduos e de iniciativas governamentais ou comunitárias voltadas para a compostagem. Diante dessa lacuna, as irmãs enxergaram uma oportunidade para iniciar um pequeno negócio.
Desde sua criação, a greentech já compostou mais de 67 mil kg de lixo orgânico e evitou a emissão de aproximadamente 52 mil kg de CO2, contribuindo para o desenvolvimento de 867 árvores em 10 anos. Com mais de 250 clientes e 135 parceiros, a empresa beneficia direta ou indiretamente todos os envolvidos. Adicionalmente, o trabalho de reciclagem realizado pelas irmãs também apoia as associações de catadores locais.
Em busca de minimizar o impacto ambiental, a Ninho do Verde adota práticas sustentáveis em toda sua cadeia de negócios, desde a não utilização de plásticos até a implementação de métodos socialmente amigáveis como a reutilização da água, o uso de energia solar e materiais biodegradáveis.
“Não adianta fazer a compostagem e, no final das contas, usar plástico. Isso quebra a cadeia de sustentabilidade. Por isso, na nossa empresa buscamos impactar o menos possível. Nossos baldinhos, sacos e outros materiais também são recicláveis, pois nosso trabalho é exatamente esse: tirar o resíduo ruim da natureza. Queremos deixar uma pegada leve e marcar de forma positiva a sociedade”, ressalta Ligia Rocha.
Além da preocupação com a natureza, a microempresa também se dedica à educação socioambiental, oferecendo oficinas e palestras sobre sustentabilidade. Durante um projeto realizado em seu processo de validação (quando a startup prova que a ideia funciona no mercado), foram conduzidas capacitações em cinco creches públicas de Teresina.
Professores, merendeiras, faxineiras e outros atores das unidades foram ensinados a fazer a separação adequada dos resíduos. Após a compostagem bem-sucedida, árvores foram plantadas em todas as escolas, utilizando o adubo desenvolvido no processo. A iniciativa durou seis meses e resultou na redução de mais de 3 toneladas de CO2. Cerca de 3 mil pessoas foram impactadas.
“É uma atividade pequena mas com um impacto que se estende a diversas pessoas, não apenas às crianças, mas também aos funcionários das escolas, às famílias dos estudantes e aos vizinhos próximos. Imagine o que aconteceria se fosse ampliado em larga escala e por um longo tempo", aponta Lígia.
De modo geral, os pequenos negócios impactam 47% da população brasileira. São cerca de 92 milhões de pessoas impactadas, sendo as micro e pequenas empresas responsáveis por gerar 93% dos empregos no país, conforme levantamento do Sebrae.
Para Marcel Fukayama, empreendedor de impacto e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), iniciativas como a protagonizada pela Ninho do Verde mostram o quanto as pequenas empresas detêm a capacidade de inovar em seus modelos de trabalho, sendo mais ágeis na adoção de práticas inovadoras.
Apesar de sonharem em mudar o mundo, as irmãs Rocha reconhecem que a transformação começa na realidade local. Por isso, buscam expandir seu impacto para outros municípios do estado, trabalhando na capacitação de agentes locais - sejam empresas, indivíduos ou entidades governamentais - para promoverem mudanças em suas comunidades.
“Nosso objetivo é transformar a realidade das nossas cidades. Queremos mostrar que qualquer pessoa pode contribuir para a preservação do meio ambiente simplesmente separando corretamente o lixo em casa. Isso traz benefícios tanto para o indivíduo quanto à comunidade ao redor”, conclui Lígia.
Tecnologia a favor da agricultura familiar
O que torna uma ideia realmente inovadora? Ciro Sá, assessor técnico da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Piauí (FAFEPI) e coordenador do programa Centelha PI, afirma que o projeto precisa ser original, agregar valor real às pessoas e ter um mercado definido.
"A ideia deve ser inédita, algo que ainda não exista, e também deve ser atraente para o mercado. Não adianta inovar se o produto ou serviço não tiver apelo comercial e não prender a atenção do público," explica.
Segundo Ciro, as universidades são um dos ambientes mais férteis para o surgimento de negócios inovadores, pois a pesquisa e extensão leva estudantes e professores a criarem novas soluções.
Foi exatamente assim que surgiu a Ecodrytec, uma biostartup que desenvolveu uma tecnologia de desidratação de alimentos movida a energia solar. Essa inovação tem contribuído para elevar a renda de agricultores familiares da zona rural de Teresina.
Idealizada pelos professores - e agora empreendedores - Alexandre Miranda e Adriana Galvão, essa pequena empresa nasceu em 2017 a partir de um projeto de extensão realizado na Universidade Federal do Piauí (UFPI). O Prof. Dr. Alexandre relata que a concepção de combinar a técnica milenar de desidratação com a modernidade da energia solar surgiu das necessidades enfrentadas pelos pequenos produtores nas hortas comunitárias da cidade.
"Apesar de minha formação em física, há alguns anos deixei de me concentrar em temas puramente físicos e passei a direcionar meu olhar para as questões sociais. Essa mudança ocorreu durante um projeto de extensão no qual oferecemos capacitação em diversas hortas. Um dos nossos objetivos era desenvolver algo que beneficiasse essas comunidades", lembra.
Durante a fase de estudos, os pesquisadores identificaram dois problemas recorrentes nas hortas da capital: os produtos finais eram comercializados por um valor muito aquém do ideal, o que não garantia uma renda adequada para os produtores, e havia um alto índice de desperdício de alimentos devido à perda de frescor ao longo do tempo.
"Em busca de soluções, optamos por desenvolver uma tecnologia de desidratação inovadora, movida a energia solar", destaca o professor. O projeto recebeu aprovação da Incubadora de Empresas de Base Tecnológica da UFPI e tornou-se uma microempresa incubada na instituição.
A partir de recursos obtidos por meio de acelerações (processo em que a startup recebe recursos financeiros e estruturais para operar), as tecnologias desenvolvidas foram implementadas em três hortas comunitárias da capital. Os produtores foram capacitados no manuseio das máquinas e também em técnicas de comercialização que agregam valor aos produtos, tais como o uso de embalagens de papel e a identificação apropriada dos produtos.
O impacto foi imediato: a desidratação possibilitou uma redução significativa do desperdício de alimentos, tornando-os mais economicamente viáveis. Com a máquina, que tem capacidade para desidratar até 8kg de alimentos, é possível processar mais de 100 produtos, incluindo carnes, frutas e legumes.
A diferença na renda já foi perceptível entre os produtores da Serra do Gavião, uma comunidade rural de Teresina com mais de 250 moradores. Uma das beneficiadas é a produtora Antônia Soares de Moura, que trabalha com hortaliças há pelo menos 15 anos. Ela relata que sua renda aumentou em 50% com o uso da tecnologia. Coentro, açafrão, manjericão e alho-poró estão entre os alimentos mais desidratados pela produtora.
"O projeto tem sido muito positivo para nós. Nossa renda aumentou porque conseguimos comercializar esses produtos por um período mais longo, inclusive nas feiras em que participamos", disse ao O Dia.
Esse processo em que os trabalhadores rurais têm acesso a uma nova forma de produção é descrito por Marcel Fukayama como "transferência de tecnologia". Ele explica que isso é essencial para ajudar os pequenos produtores a se desenvolverem e alcançarem um novo patamar de resiliência e desenvolvimento.
"O pequeno produtor é importantíssimo para a segurança alimentar do país, porém é especialmente vulnerável às mudanças climáticas. Negócios sustentáveis que buscam apoiar esse segmento são essenciais para o desenvolvimento da bioeconomia. Nesse contexto, a transferência de tecnologia é crítica, pois fornece instrumentos e ferramentas para que esses produtores possam acessar novos mercados e diversificar sua produção", afirma o especialista.
A Ecodrytec, que em 2019 conquistou um prêmio no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD Brasil), agora busca investimentos para expandir e impactar ainda mais comunidades no Piauí e, futuramente, em todo o Brasil. Os empreendedores têm um objetivo ambicioso: criar a primeira usina sustentável de desidratação de alimentos movida a energia solar da América Latina.
"Pretendemos reduzir o desperdício no estado, gerar empregos, renda e fortalecer a economia. Sabemos que, para impactar mais pessoas e incentivar o empreendedorismo nas comunidades, precisamos de um sistema mais robusto. Nossa ideia é construir uma indústria de pequeno porte que minimize os impactos ambientais e beneficie os pequenos produtores", finaliza Alexandre Miranda.
Empreendedorismo e sustentabilidade social
Sustentabilidade não se trata apenas de preservar o meio ambiente, ela envolve também aspectos sociais e culturais. Este conceito vai de encontro com os princípios da bioeconomia, que busca garantir que as comunidades locais sejam incluídas e beneficiadas pelas atividades econômicas ligadas aos recursos naturais.
“A bioeconomia promove a inclusão social, fornecendo oportunidades de emprego e renda para comunidades locais, especialmente aquelas historicamente marginalizadas. Além disso, esse modelo econômico incentiva práticas que valorizam e respeitam a cultura e os conhecimentos tradicionais das populações”, explica o professor Juliano Vargas.
Em Parnaíba, litoral do Piauí, uma empreendedora social está colocando em prática esses ideais: a professora doutora em Administração Celina Olivindo criou uma ONG visando mitigar a fome através da mobilidade social. Ela promove doações, palestras e oficinas, além de divulgar em suas redes sociais o trabalho de inúmeros empreendedores.
Mas Celina não parou por aí. Devido à sua forte ligação com o ecossistema de inovação de Parnaíba, que segue em crescimento, a professora decidiu criar uma startup para oferecer um meio digital gratuito onde nano, micro e pequenos empreendedores podem expor seus produtos. Trata-se do Farofa Social (ou FOP), uma tecnologia que visa valorizar o talento desses trabalhadores.
O pequeno negócio nasceu com a missão de reconhecer indivíduos muitas vezes esquecidos pelas grandes instituições. “O Farofa Social visa atender pessoas que não são visíveis aos olhos do poder público: elas não estão no Cadúnico e não possuem registro de microempreendedor. Um exemplo é quando viajamos e vemos, na beira da estrada, diversos vendedores. Muitos não têm condição social para serem vistos e divulgarem seus produtos”, conta Celina.
Foi durante seu doutorado que a ideia se fortaleceu. “Comecei a acompanhar essas pessoas e perceber a qualidade dos serviços oferecidos", relata. Inspirada pela necessidade de inclusão digital, ela pensou em uma solução para que esses produtores pudessem oferecer seus serviços a clientes interessadas em adquirir os produtos.
O projeto foi aprovado no programa Centelha e já criou o seu MVP, que significa Produto Mínimo Viável, uma versão simplificada do aplicativo para que sejam demonstradas as suas funcionalidades. A tecnologia, que encontra-se em fase de testagem, deve ser lançada em setembro deste ano. Até o momento, a startup já mapeou de 500 pequenos empreendedores no norte do Piauí, dos quais 75% são mulheres, a maioria envolvida na agricultura familiar e na produção de alimentos e artesanatos.
O aplicativo funcionará de maneira simples e intuitiva. “Ao navegar pelo Farofa Social, os usuários poderão descobrir que, próximo à sua localização, há uma Dona Maria que faz crochê ou um Seu João que vende siriguelas. O objetivo é justamente facilitar a interação entre os pequenos empreendedores e os consumidores”, esclarece Celina.
A empreendedora social enfatiza que o propósito maior é fomentar a economia empreendedora. "O que mais me motiva é melhorar a qualidade de vida através da inovação social e promover o sustento das famílias menos favorecidas a partir do que elas já fazem. A meu ver, tudo começa e termina com as pessoas. Por isso, precisamos entender que a responsabilidade social deve partir de cada um de nós", diz ela.
A startup planeja expandir sua atuação para todo o estado do Piauí e, eventualmente, para outras regiões do Brasil.
Tem uma ideia inovadora e de impacto social? Saiba como tirar do papel
A ascensão de startups de impacto socioambiental no Piauí mostram que o empreendedorismo pode ir além do lucro e que negócios inovadores têm o potencial de transformar a realidade local. No entanto, ainda há vasto potencial para crescimento. Cerca de 46% das startups de impacto encontram-se em fase de incubação e aceleração, enquanto 80% das iniciativas já são consideradas escaláveis. Esses números destacam a oportunidade de expansão do setor e a receptividade para novos projetos.
Mas afinal, como uma ideia pode se tornar um negócio inovador e impactar positivamente a vida das pessoas? De acordo com Samuel Moraes, Gerente da Unidade de Inovação do Sebrae no Piauí, a busca pelo conhecimento e capacitação é o primeiro passo.
"Nós oferecemos consultoria gratuita para startups. O empreendedor pode nos procurar para desenvolver seu modelo de negócio, criar estratégias e testar hipóteses no mercado antes de construir a solução. Esse processo precisa ser validado aos poucos, seguindo uma metodologia que nossos mentores podem ajudar diariamente, inclusive online e remotamente para todo o Piauí”, afirma.
Algo que a Ninho do Verde, a Ecodrytec e o Farofa Social têm em comum, além do foco na sustentabilidade, é que todas passaram por processos de consultorias, mentorias ou acelerações junto aos órgãos de desenvolvimento empreendedor do estado, como o Sebrae e a própria FAFEPI.
No estado existem ainda entidades como a Agência de Atração de Investimentos Estratégicos (Investe Piauí) e a Agência de Fomento e Desenvolvimento do Piauí (Badespi) que, além de atraírem investimentos para negócios inovadores, também fornecem recursos financeiros ao desenvolvimento de empreendimentos locais e projetos estratégicos.
“Os pequenos negócios são fundamentais para a economia. Quando eles incorporam a inovação e a sustentabilidade, o impacto positivo é ampliado. Apoiar pequenos negócios inovadores, especialmente os sustentáveis, é investir no futuro e garantir uma economia resiliente que respeita o meio ambiente e promove o bem-estar social”, aponta o presidente da Badespi, Feliphe Araújo.
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(O texto desta reportagem foi atualizado no dia 2 de junho de 2024)