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Lei da Bíblia "œviola direitos de minorias religiosas", critica mãe

Mãe questiona a sanção da chamada "œLei da Bíblia" em Teresina. Segmentos sociais se mobilizam para derrubar legislação

26/03/2021 12:48

“Você já pensou a sua filha (o) tendo que explicar dentro da escola que não quer participar daquele momento por conta da sua religião? Consegue imaginar o constrangimento? Apesar da Umbanda também ser uma religião cristã, não temos a prática da leitura da Bíblia, assim como outras doutrinas também não”. O desabafo é de Tarciana Freire, mãe de uma adolescente de 13 anos que estuda em uma escola pública na zona Sul de Teresina.  

Ela questiona a sanção da lei municipal n° 5.563, em vigor desde fevereiro de 2021. A proposta, aprovada pela Câmara Municipal e sancionada pelo prefeito Dr. Pessoa (MDB), faculta a leitura de trechos bíblicos nas escolas públicas e particulares da Capital. A medida, contudo, vem sendo alvo de críticas por parte de pais de alunos, entidades e especialistas que defendem o Estado Laico e respeito à crença de crianças e adolescentes. 

Imagem Ilustrativa/FOTO: PixaBay/FREE


“Colocar essa prática como lei e opção dentro das escolas viola sim o direito de minorias religiosas, porque está claramente favorecendo apenas dois segmentos: católicos e evangélicos, que são maioria. Mas devemos lembrar que o Estado é laico, está na Constituição. Onde fica a laicidade quando se favorece abertamente apenas dois seguimentos religiosos?”, questiona a mãe. 


O Estado Brasileiro não possui uma religião oficial, embora a maior parte da população seja cristã. O inciso VI, do artigo 5º da Constituição Federal, assegura a livre manifestação de crenças e diferentes religiões. 

De acordo com o documento, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. 

Campanha levanta discussão sobre laicidade do Estado 

Pelas redes sociais, a #THEabraça defende “não à exclusão por razão de crença” 

Lançada em fevereiro deste ano pelo jornalista e escritor piauiense Dário Castro, a campanha #THEabraça levanta a discussão sobre a laicidade do Estado. A iniciativa defende “não à exclusão por razão de crença”. Dário é autor do personagem Rabisco Cartoon, que possui 18 mil seguidores no Instagram, onde usa o humor como ferramenta para a crítica social e política. 

“O Rabisco trata de temas importantes e atuais de uma forma direta e rápida. Com ele, eu fiz o caminho inverso do textão e do vídeo, das imagens chamativas com apelo ao clique. Em 5 segundos, ele informa, critica ou se posiciona. É um jornalismo opinativo diferente, voltado para as redes sociais, onde todo mundo é bombardeado de links, cards, textos e vídeos o tempo todo. A fórmula é ser simples e dialogar com as pessoas”, conta. 

Dário Castro. Foto: Benonias Cardoso

Dário postou a denominada “Lei da Bíblia”, sancionada pela Prefeitura de Teresina, no Instagram do Rabisco e pediu que os seguidores opinassem. “O sentimento da maioria dos comentários foi de apontar que a Lei 5.563 excluía crianças pertencentes a minorias religiosas. Alguns advogados trataram da questão técnica, apontando a inconstitucionalidade da lei. Tentei resumir esse sentimento com a campanha #THEabraça e reuni esses depoimentos pra todos verem e assim levar a discussão adiante”, explica.  

E a iniciativa deu certo, como detalha Dário: “Mais pessoas trouxeram mais opiniões e fatos. Católicos, umbandistas e ateus, entre outros, se uniram com o mesmo propósito: lutar contra o preconceito. Eu fui pesquisar a tramitação da lei e vi ainda mais problemas. Aí cresceu a sensação de injustiça, o sentimento de impotência e de abandono. E decidi não ficar apenas na crítica”, completa. 

A campanha saiu do universo virtual e ganhou proporções na vida real. Dário conta que procurou a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), que protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI) contra a lei. A matéria foi distribuída para o desembargador Hilo de Almeida. 

Dário Castro. Foto: Benonias Cardoso

“Mandei tudo para eles, a lei, a tramitação na Câmara, a justificativa, tudo. Conversamos muito por algumas semanas e eles ingressaram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Lei no TJ-PI. O TJ recebeu e deu um prazo de 5 dias para a Prefeitura de Teresina se manifestar, para que os membros pudessem decidir sobre o pedido. 

“Muito se fala em justiça social como se fosse uma questão econômica, mas é muito mais que isso. Justiça social é sobre igualdade, respeito e inclusão. E cabe a cada um de nós fazer a sua parte. Estamos em 2021. Quem diria que o negacionismo e o preconceito estariam tão firmes no Brasil? Quem diria que estaríamos, hoje, enfrentando o preconceito institucionalizado por parte do poder municipal, e pior, contra crianças no ambiente de formação cidadã que é a escola? Quem diria que precisaria alguém sacudir o outro para ele enxergar essas crianças de famílias que partilham de outra crença ou nenhuma crença? É preciso ter respeito, empatia, amor ao próximo. Não são esses os ensinamentos cristãos?”, dispara. 

“É algo absolutamente discriminatório”, diz advogado da Atea 

O advogado da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), Thales Bouchaton, considera a “Lei da Bíblia” inconstitucional e a classificou como “algo absolutamente discriminatório”. Para ele, além de ferir a laicidade do Estado, a medida viola também a liberdade de crença. 

“No momento em que o Estado determina que seus agentes, professores, coloquem alunos para orações de determinada religião, isso fere violentamente a laicidade do Estado, violando ainda a liberdade de crença, já que Teresina não é composta apenas por setores do cristianismo. Existem, por óbvio, pessoas que possuem crença de matriz africana, ateus, agnósticos, espíritas... Enfim, todo manancial de crenças que existem no país. Ou seja, é algo absolutamente discriminatório, é o privilégio de uns em detrimento de outros”, disse. 

Thales Bouchaton. Foto: Reprodução/Redes Sociais

Entenda  

O projeto que culminou com a sanção da Lei 5.563 foi apresentado em 2020 pelo ex-vereador Fábio Dourado (Solidariedade) e pelo atual vereador Gustavo de Carvalho (PSDB). O PortalODIA.com não conseguiu, até o fechamento desta reportagem, contato com os proponentes. 

No Diário Oficial do Município (DOM), do dia 1º de fevereiro, consta a informação de que a lei foi sancionada visando o “conhecimento cultural e os fatos históricos bíblicos”. Além disso, a leitura dos trechos bíblicos será feita, preferencialmente, no início das aulas nos dois turnos. 

Um despacho do TJ-PI, do dia 16 de março, intimou a Prefeitura de Teresina, no prazo de cinco dias, sobre o pedido de Medida Liminar proposta pela Atea. 

Outro lado 

Em nota, a Prefeitura Municipal de Teresina (PMT) informou que desconhece qualquer ação judicial ou intimação para esclarecimentos acerca da Lei 5.563. O executivo municipal ressaltou ainda que o “dispositivo não possui caráter obrigatório, apenas faculta aos colégios da rede pública e privada da capital, a implantação da leitura de trechos da Bíblia antes do início das atividades nas salas de aula”. 

Por fim, o Palácio da Cidade reforçou “o respeito ao protagonismo do legislativo na elaboração, discussão e aprovação de matérias de interesse dos teresinenses”, e reconheceu também “a importância de um Estado laico e liberdade religiosa de todas as crenças e cultos, até mesmo dos que não professam”, finalizou. 

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