Dizem que a vida é uma eterna tomada de decisões e que, como em todo processo, ela nos revela surpresas e aprendizados. Há aqueles que vivem para encontrar a felicidade e há os que encontram essa tal felicidade justamente na busca por ela. O que traz a realização não são exatamente os momentos, mas a forma como passamos por ele. E a maneira como nos portamos diante de certas situações está relacionada justamente a isso: a tomada de decisão.
Decidir quando e decidir como. Tem gente que diz não saber a hora certa de escolher um caminho e que acredita que as viradas vêm naturalmente. Mas até os processos mais naturais exigem um certo planejamento, principalmente quando se fala em vidas, no plural. Nestes casos, decisões conjuntas são fundamentais. Conversas sobre o que se quer ser, acordos sobre como fazê-lo e certezas para que, no fim das contas, o sonho siga sendo um sonho.
Foi de comum acordo que os pequenos Lis e Henri de Sousa Brandão foram gerados. Foi de comum acordo que a mãe, Nadya Xavier, escolheu engravidar. E foi de comum acordo que ela decidiu que os óvulos usados na inseminação seriam os de sua companheira, Caroline Brandão. A decisão de que duas vidas iguais perpetuariam seus nomes e vivências foi talvez a maior já tomada em suas vidas.
“O desejo de sermos mães foi comum. Começamos a namorar e fomos morar juntas em um processo bem rápido, até. E aí veio naturalmente a ideia de termos uma família. Eu estava preocupada com minha idade, porque a gente ouve falar muita coisa relativa ao tempo da mulher para gerar uma criança. A Carol também tinha o mesmo sentimento. Fomos aos pouquinhos progredindo nas consultas, depois verificamos o orçamento e, passo a passo, fizemos uma planilha de organização para gerar nossos filhos”, relata Nadya.
Decisões por decisões, o acordo sobre quem iria gerar Liz e Henri também veio tão naturalmente quanto a escolha da maternidade. Nadya conta que sempre manifestou o desejo de ser quem gestaria os filhos do casal. Carol sugeriu usar os próprios óvulos na inseminação. “Eu também queria colocar os meus, mas aí seria um custo maior. Eu queria gerar, então tudo bem serem os óvulos dela”, explica a assistente social.
Mas é como diz a filosofia antiga: a dificuldade, em geral, mora nos outros. Nem toda a naturalidade da maternidade passou imune às opiniões e olhares alheios. Nadya Xavier comenta que ela e Carol não tiveram o apoio financeiro de ninguém de suas famílias. Os parentes tinham conhecimento da união das duas e que moravam juntas, mas elas acreditavam que o impasse em torno da geração de Lis e Henri seria muito maior se eles soubessem da ideia de ter filhos
“Foi uma fase bem conflituosa a questão sentimental e psicológica para a gente manter essa ideia, segurar a onda e botar para frente. Eu tinha uma reserva financeira, tivemos que viajar para Fortaleza para fazer o procedimento, levou cerca de 15 dias. No início foi complicado a ida, a saída de Teresina, mas quando chegamos lá para inseminação, foi muito bem acolhidas e foi outra realidade poder lidar com profissionais que entendiam que nós éramos duas mulheres querendo formar uma família”, Nadya explica.
O problema é que nem sempre o silêncio é a melhor saída para lidar com quem não entende que duas mulheres podem gerar uma vida. A verbalização, ela veio não na oralidade, mas na escrita autenticada e reconhecida em cartório. Se por um lado, Nadya e Carol lidaram com impasses familiares quando da geração de Lis e Henri, por outro, a legalização do nascimento dos filhos foi um processo tão natural quanto a decisão de tê-los.
“No cartório, quando fui tirar a certidão deles, o primeiro atendente ficou um pouco impactado por serem duas mulheres dando nomes aos filhos. Mas fora isso, em momento algum sentimos preconceito. Precisamos só de uma papelada a mais da clínica onde fizemos a inseminação para poder fazer a certidão, mas nada de outro mundo. Ficamos até um pouco surpresas, porque infelizmente as pessoas ainda têm esse preconceito nas entrelinhas e nos olhares. Principalmente quando são desconhecidos. Sempre perguntam se a gente recebe ajuda de alguém e eu falo na lata que não, que somos apenas eu e minha companheira”, afirma a assistente social.
O processo, segundo Nadya, é de descoberta diária. Ser mãe, para ela, é como um misto de conhecer o novo com se surpreender consigo mesma. Enfrentar situações sem saber se terá êxito ou não, tudo em nome dos filhos. “É tudo por eles e para eles. É amar sem um motivo. É um amor que não precisa de algo em troca, eles não precisam fazer nada para que eu sinta isso. É como um rio que corre para o mar e a minha felicidade é justamente esse caminho para eles”, finaliza ela.
Quando são os filhos que escolhem por nós
“O desejo de ser mãe já vem de algum tempo. A gente amadureceu a ideia a partir de 2010 quando decidimos nos inscrever no Cadastro Nacional de Adoção e quatro anos depois, em 2014, a Luma chegou para nós. Ela tinha só oito meses, mas eu e minha então companheira, a outra mãe dela, nos abrimos para ela e para aquela experiência ímpar”.
Quem diz isso é Marinalva Santana, ativista dos direitos LGBTQIAP+ no Piauí e coordenadora do Grupo Matizes. A despeito do capital simbólico que Marinalva tem na pauta da diversidade, ela também é conhecida por ser simplesmente “mãe da Luma”. E esse status foi alcançado mediante um processo de adoção pelo qual Marinalva passou junto com a então companheira, também mãe de Luma, Quitéria Costa. Luma é a primeira criança adotada por um casal homoafetivo no Piauí após as novas regras do Cadastro Nacional de Adoção que o Conselho Nacional de Justiça criou.
Marinalva costuma dizer que foi Luma que escolheu a ela e a Quitéria. Mas até mesmo o processo natural do “ser mãe” passou por dificuldades no meio do caminho. No caso das duas, a questão legal foi a mais contundente. Após a adoção de Luma, Marinalva e Quitéria tiveram impasses em seus respectivos trabalhos quanto à concessão da licença adoção.
Isso porque Luma foi adotada com somente oito meses. Quando Marinalva e Quitéria foram entrar de licença para cuidar da filha, receberam somente 45 dias. Elas tiveram que ajuizar uma ação para terem direito de gozar da licença adoção plenamente. “Entramos com um processo na Vara da Infância e o resultado foi rápido. A justiça determinou licença de 120 dias para mim e 120 dias para a Quitéria. Hoje já existem decisões do Supremo que dizem que a licença adoção é em favor da criança e não das mães e que ela tem que ser igual à licença maternidade”, explica Marinalva.
Ela diz acreditar que as dificuldades enfrentadas na maternidade estão menos associadas à relação mães e filha e mais associadas ao que vem de fora. Para Marinalva, a sociedade ainda estereotipa muito um casal de mulheres e mães, e o maior desafio é não deixar que a pequena Luma, que hoje tem 9 anos, se deixe afetar com isso. Ensinar a filha a viver com a diversidade é o principal caminho, afinal, a pluralidade é a lei do universo.
“Desde cedo a gente educa a Luma para ela perceber que existem famílias com as mais diversas formatações. Tem criança que tem duas mães, dois pais, um pai e uma mãe, só um pai ou só uma mãe. Colocamos ela para conviver com crianças que confirmem isso que a gente fala para ela ver que acontece na prática e que não é só teoria. Ainda enfrentamos olhares enviesados e preconceito porque além da Luma ter duas mães, são duas na parte de um processo de adoção. Procuramos enfrentar isso com leveza e firmeza essas manifestações de preconceito por vezes surgem e ensinar isso a ela”, afirma Marinalva.
Para ela, a maternidade se resume em resiliência e aprendizado. “Me vejo hoje como uma pessoa que tem crescido e se tornado mais humana. Acho que a maternidade me fez isso, ter mais resiliência e paciência. A partir da experiência da maternidade com a Luma, acho que encontrei mais serenidade para enfrentar as adversidades”, finaliza.
Direito à licença independe de quem gerou o filho
Prevista em lei, a licença maternidade não muda no caso de sua aplicação para um casal de mulheres. As duas mães possuem direito ao benefício independentemente de quem gerou o filho. É que a legislação brasileira entende que a licença maternidade é o período para criar o vínculo materno com o filho deve ser concedido tanto para quem gestou a criança quanto para quem participará ativamente de sua criação.
O mesmo se aplica para a licença adoção, ou seja, nos casos em que o casal se torna mães por meio de um processo adotivo. Nos dois casos, tanto na licença maternidade, quanto na licença adoção, o período concedido é de 120 dias. Quem explica é a advogada Ana Letícia Arraes, da Comissão de Direitos das Famílias e Sucessões da OAB-PI.
“A única diferença da licença maternidade para a licença adoção é que na adoção, as mães precisam de um período de convivência e têm o direito a ter folgas do trabalho para poder conviver com esse filho que está sendo adotado antes mesmo de ter a guarda definitiva”, diz Ana Letícia.
É importante frisar que o período da licença adoção independe da idade do filho que está sendo adotado. “Se for um bebê, uma criança ou um adolescente, não importa. As mães têm direito a gozar dos 120 dias previstos em lei, até porque cada fase da vida requer cuidados específicos. Não é só um bebê que precisa conviver com a mãe durante a licença. Uma criança e um adolescente também têm o período de adaptação e convivência, portanto as mães devem gozar da licença do mesmo jeito”, afirma a advogada.
As necessidades dos filhos também são consideradas no processo de divórcio. É que a lei brasileira não estabelece nenhum tipo de prioridade na guarda para a mãe que gerou a criança. De acordo com Ana Letícia Arraes, o que pode haver é o filho ser muito pequeno e ainda depender do leite materno. Nestes casos, a mãe que o gestou passa mais tempo com o filho, mas futuramente essa convivência pode mudar. O direito ao convívio, ela diz, são os mesmos para as duas mães.
“Assim como acontece em outros tipos de configurações familiares, tem a guarda compartilhada, existe o direito à pensão alimentícia e o direito à ampla convivência. O ideal é que não seja um convívio quinzenal, porque o afeto vem dessa convivência. Os direitos sãos os mesmos para as duas mães”, explica a advogada.
No caso de filhos gerados por inseminação, a lei brasileira diferencia dois processos: a inseminação legal, feita com o material de um doador desconhecido e escolhido em um banco; e a inseminação caseira, onde o doador é alguém conhecido e próximo às mães, podendo ser um amigo ou um parente distante de uma delas. No caso da inseminação caseira, a advogada Ana Letícia Arraes recomenda que seja feito um contrato para evitar que o doador reclame a paternidade posteriormente.
“Na adoção legal, o doador não pode exigir a paternidade biológica. Geralmente a doação é anônima, então não tem como saber quem é o pai. E na doação caseira, a pessoa acaba conhecendo. É interessante que tenha um contrato para que ele não tenha possibilidade de exigir a paternidade. Em relação aos nomes, não existe proibição da criança ter o sobrenome das duas mães. Elas só devem manifestar no cartório o desejo de registrar o filho conjuntamente”, explica.
Caso conheçam o doador e queiram incluir o nome dele no registro e na criança, podem optar por isso, desde que tudo seja feito conforme o trâmite legal junto ao cartório.
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