Você sabe o que significa a sigla LGBT? E LGBTQ? E quando se aumentarmos mais e transformarmos em LGBTQIAPN+” Tem quem não entenda o “+” da questão e tem aqueles que se perdem totalmente quando passa da quarta letra. No Dia da Diversidade, comemorado neste 28 de junho, as histórias de luta de quem faz parte da comunidade LGBT vai muito além da quantidade de letras para autodenominação, muito embora cada letrinha seja um grito de afirmação de “eu sou, eu existo, estou aqui e preciso que me vejam”.
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28 de junho não é uma data escolhida à toa. Ela está relacionada ao aniversário dos motins de Stonewall: uma série de manifestações contra a perseguição policial no bar Stonewall Inn, em Nova York, que ocorreram em 1969. O local era um popular ponto de encontro entre a comunidade LGBT, e os protestos contra a violência que o grupo sofria se tornaram um marco no movimento moderno pelos direitos de quem faz parte da comunidade.
De 1969 para cá, muita coisa mudou, algumas permanecem iguais, mas um fato é certo: as manifestações de Stonewall foram um pontapé nos movimentos de inclusão e reconhecimento de diversos grupos antes invisibilizados perante a sociedade. É que dentro da pluralidade há mais pluralidade. A sigla LGBT não dava mais conta de representar a diversidade de identidades de gênero e orientações sexuais dentro da comunidade.
LGBT focava nas pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Com o tempo, os movimentos se tornaram mais inclusivos. O LGBT se tornou LGBTQ para abarcar a comunidade Queer, que se refere às pessoas cujas identidades de gênero não se conformam com as normas tradicionalmente estabelecidas pela sociedade. Incluiu-se, posteriormente, o I para as pessoas Intersexuais, ou seja, as que nasceram com características sexuais que não se enquadram tipicamente nas definições padrões de masculino e feminino.
Posteriormente veio o A para denominar as pessoas Assexuais: aquelas que experimentam a ausência ou baixa atração sexual por outras pessoas. O P foi acrescentado para se referir aos Pansexuais, indivíduos que são sexualmente ou romanticamente atraídos por outros indivíduos independentemente de seu sexo, gênero ou identidade de gênero. Por fim, o N delimita o grupo de pessoas Não Binárias, cuja identidade de gênero não se encaixa exclusivamente nas categorias binárias tradicionais de masculino e feminino.
O “+” da questão não é exatamente uma questão: se refere a todo e qualquer indivíduo que não se identifique como integrante do que se entende como padrão de gênero, identidade de gênero e orientação sexual pregados pela sociedade. O + inclui e dá visibilidade. Assim como cada letra da sigla, é um apelo pela cidadania e o direito de existir.
É isso o que afirma Joseane Borges, diretora de Promoção da Cidadania LGBTQIA+ no Piauí. “Acho que cada segmento da população LGBT vem se construindo a cada dia. Não é que não existiam. Sempre existiram. Todas essas siglas existiam. Elas não tinham essa oportunidade de se expressar como tal e se colocar dentro da sociedade como tal. Só que hoje, com a garantia mais avançada dos direitos, mesmo a duras penas, conseguimos conquistar alguns espaços. Por isso estamos citando cada letrinha dessas e fazendo com que cada uma delas seja reconhecida como tal e também respeitadas”, diz.
Joseane lembra que a inclusão do T e a transformação do antigo termo GLS para o conhecido LGBT ocorreu para visibilizar as travestis e pessoas transexuais, que foram os grandes impulsionadores da luta em Stonewall.
Internacionalmente é comum usar o termo guarda-chuva Queer para se referir a quem faz parte da comunidade LGBTQIAPN+. Há, no entanto, comunidades que usam a sigla LGBT+ ou LGBTI+. No Brasil é comum utilizar LGBTQIA+, conforme empregado pela Secretaria Nacional vinculada ao Ministério dos Direitos Humano. Joseane Borges lembra que não existe um termo correto e que todos eles podem ser usados.
Cidadania é garantir direitos
Direitos, responsabilidades e participação em uma comunidade política. São estes os pilares da Cidadania e é em busca disso que a comunidade LGBT+ vem lutando ao longo do tempo. Mas para ter acesso à cidadania, é preciso antes de tudo existir e ser reconhecido como indivíduo integrante do todo social. Neste sentido, surgem as políticas afirmativas, que perpassam as várias esferas da sociedade tais como a saúde, a segurança e a educação.
O Piauí é pioneiro no Brasil na criação de um protocolo específico de atendimento às pessoas LGBT+ nas unidades de Segurança Pública. As abordagens policiais no Estado, bem como todo o procedimento legal de recebimento de denúncias e investigação, devem seguir as especificidades da identidade de gênero informada pela vítima à autoridade policial. Criado em 2023 por meio de portaria, o texto prevê, dentre outros, uso de nome social e dos pronomes pessoais adequados.
Já na área da Saúde, o Piauí conta com o Ambulatório Makelly Castro, inaugurado em 2020 no Hospital Getúlio Vargas. Unidade de Saúde Integral da População Trans, o espaço leva inclusão e acolhimento em saúde às pacientes transexuais e travestis. Em um ano, o ambulatório realiza, em média, 240 atendimentos.
São protocolos e espaços de acolhimentos que, segundo Joseane Borges, foram pensados para efetivar política públicas voltadas para a população LGBT e barrar o preconceito. Como afirma a promotora de Cidadania LGBT+ no Piauí, “quando a população trans chega na sala de aula com corpo de Maria e é chamada de João, ela é expulsa de sala de aula. É nesse momento que a gente vê que a população trans não tem direito ao respeito à sua identidade. E a nossa é luta é para garantir o direito ao nome social, à identidade de gênero da população trans”.
No Piauí, é norma garantir o nome social nos documentos escolares de pessoas LGBT+. A medida consta em instrução normativa publicada pela Secretaria Estadual de Educação (Seduc) em 2019. O documento prevê “respeitar o nome social evitando a utilização do respectivo nome civil e garantir o respeito à identidade de gênero evitando casos de bullying e evasão escolar decorrentes de preconceito”.
É por meio das políticas públicas que a população LGBT+ tem sua cidadania assegurada e, partir delas, o direito à vida. Cidadania LGBT é ser visto, ser reconhecido, ser respeitado e, principalmente, pode viver sendo quem se é. Como conclui Joseane Borges. “Dando cidadania, damos à população LGBT+ o direito de ir e vir, de usufruir de tudo que a sociedade oferece e é para isso que lutamos. Cada letrinha, no final, importa, porque cada letrinha é. E se somos, existimos. Se existimos, merecemos ser vistos e respeitados”, finaliza.
Não-binariedade: dentro de um sujeito cabem vários outros
No cenário diverso das identidades de gênero, as pessoas não binárias constituem uma comunidade frequentemente mal compreendida. Longe dos padrões tradicionais de masculino e feminino (homem e mulher), as pessoas não binárias são um testemunho vivo da diversidade humana, e suas existências propõem reflexões sobre o que significa se reconhecer verdadeiramente. É um processo de luta pela aceitação e pelo reconhecimento do “eu” perante a sociedade. E, também, o entendimento de que dentro de um sujeito cabem vários outros.
Já dizia a filósofa Hannah Arendt: “a pluralidade é a lei da Terra”. Assumir essa pluralidade e, sobretudo, vive-la se torna um desafio e tanto em uma sociedade criada para rechaçar tudo aquilo que “foge aos padrões”. Um padrão, deve-se reforçar, heteronormativo que joga na marginalização tudo aquilo que ocupa um lugar de não-compreensão. Como uma pessoa não binária explica para a sociedade quem ela é sendo que essa própria sociedade não dá a ela um espaço seguro para isso e não se permite entende-la?
É o questionamento que Ayan Gomes (Trix), vem se fazendo desde o final de 2018, quando começou a perceber que de alguma forma o gênero feminino não dava conta de explicar quem era. Psicologue e artista, elu conta que o entendimento do que é homem e mulher não abarcava o próprio pertencimento no mundo, a forma como se observa e as formas como as outras pessoas lhe veem. Trix se percebe como uma pessoa não binária e vai se construindo enquanto tal através de diálogos com seus pares, a partir de leituras sobre estudos de gênero que lhe ajudam a entender quem é e a ocupar um espaço de pertencimento no mundo.
“Foi uma caminhada que começou lá no fim de 2018 até que eu pudesse me nomear e ter um nome com qual pudesse me referir a mim. A não binariedade é esse lugar que eu estou. É isso que eu sou. E a partir do momento em que eu me nomeio uma pessoa não binária, eu percebo que até meu nome, que foi dado pelos meus pais, não faz sentido para mim. Eu me dei um nome. Naquele momento foi uma experimentação, mas acho que estar no mundo é experimentar e vivenciar o que dá para ser vivenciado para que a gente possa se encontrar de alguma forma”, diz Trix.
O caminho não é fácil. Pelo contrário. Se assumir uma pessoa não binária envolve lidar com mais que a incompreensão social do termo. É esbarrar em preconceitos, em julgamentos e ver direitos serem retirados um a um por um mundo que parece ter sido pensado para atender uma dualidade que, na realidade, é mera convenção. Uma convenção que, a passos lentos, vem sendo derrubada.
Em 2014, a Suprema Corte da Índia reconheceu a existência de um “terceiro gênero neutro”, que não é nem masculino nem feminino, e permitiu que milhares de pessoas transexuais e eunucos tivessem seus direitos reconhecidos. Até então, esta comunidade, conhecida no país como “hijras”, vivia à margem da sociedade indiana No sudoeste do México, há os Muxes, indivíduos pertencentes ao terceiro gênero do povo Zapoteca, que historicamente habita aquela região. São pessoas que possuem uma identidade de gênero exclusiva daquela comunidade e que não se identificam nem como homem, nem como mulher.
São exemplos como estes que atestam que a não binariedade não é algo novo ou “fruto da modernidade”, como prega a sociedade. Pessoas não binárias não são “invenções”. São apenas pessoas que querem e buscam serem reconhecidas como tal sem ter que viver a violência e a intolerância alheia.
“Acho que se nomear enquanto uma pessoa não binária é um ato político, porque você está dizendo ali que é uma pessoa, mas que está reivindicando direitos que foram negados a você, que está reivindicando uma forma de ser e de existir no mundo. Homem e mulher são conceitos pensados de outras formas muito diferentes do que a gente pensa na nossa sociedade. Mas acho que é nesse lugar de não binariedade que podemos encontrar uma forma de ser uma multiplicidade. Existem inúmeras outras possibilidades de ser, viver o mundo e se sentir nele. A não binariedade está dentro disso”, pontua.
Trix lembra que o processo de se fazer ver e existir socialmente não é fácil e que se assumir como uma pessoa não binária é, dentre outros pontos, perder a chance de entrar de forma digna no mercado de trabalho, perder a chance de dizer que tem um nome e ter esse nome reconhecido, de dizer que tem um gênero e de ele ser reconhecido.
O acesso à saúde também fica impactado, já que os hospitais não estão preparados para receber pessoas trans e não binárias. Trix conta que teve que lidar com a transfobia institucional até dentro das universidades e das instituições de emprego, e que viu nos movimentos sociais um espaço de pertencimento e força para pensar em um futuro que lhe fosse possível.
“Se eu pudesse dizer algo para as pessoas sobre quem eu sou, eu diria que eu sou eu. Mas assim como inúmeras outras pessoas não binárias, eu sou uma pessoa que sonha, que fabula, que invenciona, mas também sou uma pessoa que está longe dessa lógica binária de homem e de mulher. Não me entendo dentro disso, não sou e nunca fui homem ou mulher. Estou fora dessa binariedade e ao mesmo tempo estou fluindo dentro dessas possibilidades que me são colocadas. Eu posso brincar e me rearranjar a partir do gênero. Não binariedade, para mim, é essa coisa linda que a gente pode fazer dentro das possibilidades dos gêneros”, finaliza Trix.
Linguagem neutra é acolhimento da corporalidade através da comunicação
Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu uma lei do Estado do Amazonas que proibia a linguagem neutra nas escolas. Em seu voto, o ministro Flávio Dino destacou que compete à União legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional. A ação havia sido movida pela Aliança Nacional LGBTI+ e a Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas. Aqui no Piauí, a Assembleia Legislativa do Estado (Alepi) aprovou repúdio à criação de um programa de linguagem neutra para alunos e gestores.
O debate gera impasses, mas afinal, o que é a linguagem neutra? A linguagem neutra, também conhecida como linguagem não binária, é uma forma de comunicação que busca evitar o uso de pronomes e termos que tradicionalmente implicam distinção de gênero. O objetivo é promover uma linguagem mais inclusiva, que não privilegie nem exclua pessoas com base em sua identidade de gênero, contribuindo para uma sociedade mais igualitária e respeitosa da diversidade.
Enquanto pessoa não binária, Trix menciona que, a partir do momento que se usa a linguagem neutra, se cria novas possibilidade de se comunicar e há o acolhimento da corporalidade do outro através da comunicação. “Estamos dizendo mais uma vez para este mundo que estamos aqui e que vocês precisam nos enxergar e se adequar de alguma forma. Esse acolhimento com as pessoas não binárias passa também pela forma de se referir a nós. Discutir a linguagem neutra é importante, porque se uma comunidade ou grupo cria uma nova forma de se expressar, é porque nosso dialeto não dá conta de acolher todo mundo”, explica.
Pansexualidade: ser livre para amar sem rótulos
Não somos produtos em uma prateleira de supermercado, taxados em um código de barras e imutáveis. Dentro da comunidade LGBT+ se fala em identidade, mas não necessariamente em rotular uns aos outros. A palavra “rótulo” pressupõe “inserir em uma forma”. Para quem faz parte da comunidade, “enformar” nem sempre pode ser algo positivo. Liberdade e fluidez seriam, então, as palavras de ordem.
É na liberdade que o cantor Davi Lutasi encontra a expressão de si mesmo. Pansexual, ele afirma que sua lei é “ser livre para amar quem quiser sem rótulos, sem conveniências sociais pré-estabelecidas como a binariedade”. E ao contrário do que muita gente pensa, a pansexualidade passa longe do que as pessoas entendem por “promiscuidade”. É permitir amar o outro e ser amado sem se ater ao gênero.
Davi conta que se entendeu pansexual quando teve uma experiência amorosa com uma pessoa não binária. Nesse momento, ele percebeu que não se importava com o gênero, mas sim com a pessoa como ela é. “Eu sempre soube que não era hétero, mas ficava confuso em qual das letras eu me encaixava. Não me via apenas como gay e por um tempo me rotulei bissexual, mas ainda não me sentia representado completamente. Até que depois dessa experiência, passei a pesquisar mais sobre a pansexualidade e me senti de fato representado”, relata.
Ao se assumir pansexual, Davi precisou lidar com a incompreensão no seio familiar. Havia quem dissesse que sua pansexualidade era uma “desorientação sexual” e não foram poucas as vezes em que o cantor foi posto em um lugar de promiscuidade. Ele confessa que a pansexualidade ainda tem um local de deslegitimação dentro da comunidade, sobretudo por quem acha que pansexual é a mesma coisa que bissexual. Por isso, Davi sempre fez questão de levantar a bandeira.
“É quebra de barreiras. Eu agradeço a quem veio antes de mim e me permitiu ter os direitos que eu tenho hoje, os privilégios que tenho. E eu vou seguir na luta, quebrando mais barreiras para que a minha geração e as gerações futuras possam ser ainda mais livres. Porque amar é liberdade. E a gente só quer ser livre para poder amar”, finalizou.