A dificuldade de empreender existe. O fato é realidade especialmente para empreendedoras negras no Piauí, que enfrentam diariamente o preconceito pela cor da pelo ou pelo fato de serem mulheres. Mas apesar das dificuldades, o Piauí é o terceiro estado do Nordeste com mais mulheres donas de negócio.
Lívia do Rego Monteiro Melo, analista do Sebrae no Piauí, explica que o órgão auxilia empreendedoras através de orientações em consultorias, cursos, mentorias e eventos voltados para empresárias.
Lívia do Rego Monteiro, analista do Sebrae no Piauí, explica que o órgão auxilia empreendedoras - Foto: Divulgação
O relatório do Sebrae sobre empreendedorismo negro de 2019 aponta que, no Brasil, 9,6 milhões de mulheres estão à frente de um negócio, sendo que as negras representam metade desse número, ou seja, cerca de 4,7 milhões são mulheres negras.
Ainda criança, a artesã Laziane Pereira Lima lembra que começou a vender bijuterias, pequenos objetos, em Lagoa do Piauí, mas sempre cultivando o sonho de fazer algo com as próprias mãos para comercializar. “Sempre fui apaixonada por artesanato e quando engravidei no final de 2013, fiquei naquela de fazer as roupas de bebê, só faltava a máquina, e meu esposo comprou”, lembra a empreendedora.
Liziane relembra que enfrentava comentários preconceituosos - Foto: Arquivo Pessoal
“A partir daí as pessoas viam minha filha sempre combinando com roupinhas combinando e eu dizia que eu tinha feito. Elas começaram a encomendar e eu divulguei nas redes sociais, e montei meu atelier em casa”, explica Laziane. Após algum tempo ela decidiu abrir um espaço físico no mercado público de Lagoa do Piauí, e hoje está à frente do projeto Mulheres Empreendedoras de Lagoa do Piauí, buscando participar do crescimento de outras empreendedoras.
Ela lembra que há anos faz as capacitações do Sebrae e que o órgão ajudou bastante na sua trajetória. “Inclusive vamos lá dentro do Sebrae buscar esse conhecimento, mesmo com as dificuldades no início. Hoje já recebemos capacitações e palestras, e temos esse vínculo forte com o Sebrae”, lembra Laziane, que produz diversos produtos para presentear.
Pela cor da pele negra, Laziane relembra que quando era mais nova enfrentava comentários preconceituosos de vizinhos. “Eles viam nossas olheiras, que são características de quem tem a pele mais escura, e diziam logo que a gente usava drogas, o que estava longe de ser verdade”, diz.
“Através das fotos que eu posto na internet tenho um grande alcance, e especialmente nas datas especiais, vendo muito. Sempre divulgamos muito na internet e trabalhamos 24 horas”, conta a empreendedora.
Empreendedoras negras utilizam a internet para comercializar produtos e serviços
A vivência de Laziane reforça a opinião do presidente do Sebrae, Carlos Melles, que em recente entrevista apontou que as empreendedoras negras foram as que mais se digitalizaram e utilizam a internet para comercializar produtos e serviços, o que fez com que os resultados delas não sejam piores. Entre esse grupo, 80% marcam presença no mundo digital, enquanto a média geral é de 74%, aponta a 13ª Pesquisa de Impacto da Pandemia do Coronavírus nos Pequenos Negócios, realizada pelo Sebrae em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Ainda segundo Carlos Melles, não se pode ignorar que aspectos culturais interferem no desempenho das empreendedoras negras e no tipo de empreendimento que elas possuem, que muitas vezes são de natureza mais simples e em atividades que demandam um maior contato com o público, aspectos que foram inviabilizados durante a pandemia.
Após ficar desempregada durante a pandemia, a agente de viagens Flávia Letícia Vieira Rodrigues foi trabalhar em uma empresa de telecomunicações em Teresina, em fevereiro de 2021. “Não consegui ficar lá nem 30 dias. Tive uma crise de ansiedade lá dentro, chorando. Naquele dia decidi que iria procurar alguma outra coisa e que não iria mais para lá”, explicou. Lá mesmo na empresa de telecomunicações ela começou a calcular quanto seria necessário vender para sair do emprego formal.
Ela já trabalhava ajudando a tia que fazia hambúrgueres, então, em março de 2021, ela decidiu que era a hora de empreender. “Não foi nada planejado, veio de uma crise existencial naquele momento que precisava sair de casa e pagar as contas”. Foi então que surgiu a Leti Doces
Os pequenos negócios respondem por 99% das empresas brasileiras
À frente de pequenos negócios, empreendedoras como Flávia Letícia estão incluídas na estatística de que, atualmente, os pequenos negócios respondem por 99% das empresas brasileiras, mais de 55% dos empregos formais e 30% do PIB.
Para ela, o maior desafio não veio por ser negra, mas sim por ser mulher no mundo predominantemente masculino do empreendedorismo. “Pelo menos nunca percebi o preconceito por ser negra. Eu enfrento o desafio de manter a constância nas redes sociais, especialmente porque preciso conciliar a empresa com meu emprego do dia a dia. Antes eu trabalhava com gerente de projetos na Prefeitura, e ali sim eu via olhares meio inseguros por ser negra, mas na Leti Doces não”, explica ela.
As vendas são feitas bastante pelo Instagram, mas as postagens acabam ficando atrasadas por questão de tempo. “Tenho muita foto, muito vídeo, mas sobra pouco tempo para fazer essas postagens. É tudo muito corrido”, disse. Ao final do dia, após trabalhar como agente de viagens, ela ainda precisa direcionar esforços para produzir os doces e bolos da sua empresa.
A analista do Sebrae, Lívia Melo, aponta que, segundo pesquisa realizada pelo Sebrae Piauí, no quatro trimestre de 2021, 40,2% das empreendedoras trabalham de 14 até 40 horas por semana, sendo que 42% atuam no setor de serviço.
Há sete anos, de forma não planejada, Maria Edinete Sousa da Silva Santos decidiu que empreender era a melhor solução para sair da situação precária em que estava. “Trabalhava em um restaurante e o dono foi embora, então resolvi fazer marmitas para vender e comecei daí. Meu marido saiu do trabalho no horário do almoço e foi entregar uma só marmita na empresa de uma amiga. Duas semanas depois me dei conta que boa parte dos funcionários dessa empresa já estava pedindo comigo. Depois de alguns meses fechei com outra empresa e dei uma alavancada”, explicou.
Maria Edinete decidiu que empreender era a melhor solução - Foto: Arquivo Pessoal
Pandemia afetou os empreendedores
Durante a pandemia veio o baque: a maioria dos clientes atuava no horário comercial ou em escolas, então a empreendedora se viu sem opção e fechou as portas. “Surgiu então a ideia de fazer hambúrgueres para vender. Então com a ajuda de amigas, começamos a empreender e vamos fazer três anos nesse ramo”, comemora ela, afirmando que o negócio só cresce. “A pandemia afetou os empreendedores de maneira geral porque reduziu o faturamento das empresas e, em muitos, até mesmo o fechamento ou a revisão do modelo de negócios aqui no Piauí”, afirmou a analista Lívia do Rego Monteiro Melo.
Apesar de enfrentar preconceito por ser mulher em um ramo que privilegia homens, Maria Edinete explica que nunca sofreu por ser negra. “Por mais incrível que pareça, em hamburguerias temos poucas mulheres. Pode até ter, mas não conheço. De certa forma sofri mais olhares de preconceito por ser mulher”. Ao abrir outro negócio, desta vez uma pizzaria, ela mostra que a mulher no empreendedorismo tem a capacidade de transformar a realidade e protagonizar o desenvolvimento de suas comunidades.
Durante a pandemia, em 2020, Andreia Xavier começou a fazer artesanato com peças em EVA (uma borracha flexível que pode ser moldada), como canetas e bonecas. Antes ela fazia esse trabalho por prazer, para presentear familiares e amigos. “Meu marido estava trabalhando com comissões, mas nossa renda caiu quase pela metade, e eu estava em uma gravidez de risco, então não podia sair de casa para trabalhar, ainda mais durante a pandemia”, disse a empreendedora. Era pouco dinheiro e muitas contas. “Mesmo assim vi que não estava dando muito certo para mim, então, em 2021, decidi mudar de ramo, então comecei a assistir lives, fazer cursos de bolos e comecei a vender na porta de casa e divulgar nas redes sociais”, lembra.
Andreia Xavier diz que o maior desafio para a mulher negra empreender é a credibilidade - Foto: Arquivo Pessoal
Andreia se encaixa nos dados do Sebrae, de que 51% das mulheres negras empreendem por necessidade, enquanto esse é o caso de apenas 35% das mulheres brancas. Além disso, apenas 21% das mulheres negras são registradas com CNPJ. O índice é o dobro entre mulheres brancas.
Quando decidiu apostar em bolos mais trabalhados, suspiros e brigadeiros, Andreia viu o negócio ganhar impulso. “Não foi nada planejado, foi realmente a necessidade, era estar dentro de casa e ver as contas chegando e você não poder ajudar é complicado. Acabou que meu marido oferecia os produtos pro pessoal do trabalho e meu irmão começou a fazer entregas para gente”, disse.
O maior desafio para a mulher negra empreender é a questão da credibilidade. Pelo menos é o que acredita a empreendedora Andreia Xavier. “Muitas vezes as pessoas não dão tanta credibilidade ou tanto valor quando veem uma mulher negra. Isso foi o que eu senti. Quando ia entregar os bolos via a surpresa de algumas pessoas pela minha cor da pele, e notava isso até pelo tom de voz. Mas ainda bem que existem clientes que se tornaram até amigos, que me tratam maravilhosamente bem”, explica.
O grande desafio da mulher é crescer no empreendedorismo. Para a analista Lívia Melo, a empreendedora precisa de capacitação contínua. “Ela precisa reforçar sua autoestima, e a partir daí ela precisa se empoderar, a partir para a capacitação. Ela precisa se capacitar nessa área e na área de inovação”, explica. “A mulher precisa adquirir a segurança para avançar no mundo empresarial”, finaliza a analista.