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Consciência negra: onde estão as jornalistas negras

Profissionais lembram preconceito ao ingressar na carreira e da necessidade de provar diariamente que são capazes.

20/11/2019 06:40

No jornalismo brasileiro, apenas 23% dos profissionais são negros e pardos, enquanto que 55,8% da população brasileira se autodeclara negra. Os dados são de uma pesquisa realizada pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no ano de 2012, e retratam uma realidade fácil de ser constatada a olho nu.

Outro agravante é que o número de mulheres negras nas redações chega a ser ainda menor, pois o perfil traçado pela pesquisa é que “as jornalistas brasileiras eram majoritariamente mulheres brancas, solteiras, com até 30 anos”. Então onde estão as mulheres negras que se formam a cada ano? Esta é uma das indagações da jornalista e bailarina Déborah Radassi.

Déborah tem 33 anos e começou a trabalhar com a dança aos 16, pois precisava de dinheiro para comprar livros e atender suas necessidades pessoais. Mesmo morando com os pais, eles só podiam lhe oferecer o básico. Então, a artista começou a se questionar sobre uma formação acadêmica e viu na Comunicação Social a possibilidade de juntar as duas paixões. Falar e se expressar através do corpo. Ao prestar vestibular, não conseguiu nota suficiente para ingressar em uma universidade pública, mas conseguiu entrar no curso em uma faculdade particular através do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies).


Déborah Radassi assumiu o cabelo cacheado ainda na graduação, e era vista por todos como a exótica - Foto: Um Zé

Alguns dias após se formar, Déborah teve uma surpresa, recebeu do médico a notícia de que nunca mais poderia dançar, pois estava com duas hérnias de disco. Durante a graduação, ela não teve muitas experiências no jornalismo. Mas a Comunicação era o seu único meio para ganhar dinheiro no momento. E foi exatamente quando ela sentiu o racismo na pele.

“Eu entrei em um momento péssimo, porque eu estava preparada para o mercado da dança. Não tinha nenhuma prática que valorizasse meu currículo. Mas tinha que dar um jeito. E foi quando recebi uma proposta para trabalhar na política, fui assessora de um partido político. Na entrevista, fiz os testes e fui aprovada. E o contratante me colocou lá em cima. No final da entrevista, ele disse: ‘Débora você vem trabalhar com esse cabelo?’ Foi uma maneira camuflada de dizer ‘não aceito você com esse cabelo’, e eu só voltei, sentei à mesa e disse "eu só tenho esse cabelo, e se quiser meu trabalho vai ser com ele’. Ele mudou de ideia, e eu saí aos prantos”, relembra Déborah Radassi.

Ao relatar o fato, a bailarina se emociona, pois lembra que não foi fácil uma mulher, ‘preta, de cabelo balulo, assumir uma assessoria de um partido político de elite’. Radassi assumiu o cabelo cacheado ainda na graduação, e era vista por todos como a exótica. Era apontada nos corredores e questionada por onde passava sobre o seu trabalho jornalístico.


Não foi fácil uma mulher ‘preta, de cabelo balulo, assumir uma assessoria de um partido político de elite’ -  diz Déborah


“Foi dobrado, eu tinha que provar com os meus textos que eu era capaz de assumir aquela missão. Foi uma mudança muito forte na minha vida, porque eu pensei, se eu estou conseguindo encarar isso, eu consigo coisas piores. Então eu ingressei com preconceito, trabalhei um ano, saí, fiz freelance e estou em uma TV local”, conta Déborah.

Segundo a jornalista, para conquistar todas as coisas que possui atualmente, ela teve que provar diariamente que era capaz, através do conhecimento, pois não queria ser apenas uma exótica.

“A gente não para para analisar quantas mulheres negras estão saindo da Universidade a cada seis meses, quantas dessas assumem funções em produção, reportagem, impresso? A maioria das minhas colegas são brancas. E as minhas colegas, que passam o que eu passo, trabalham por sua plena capacidade e não por oportunidade”, argumenta Déborah Radassi.

“O racismo que não é explícito é a pior coisa no Brasil”, desabafa Biá Boakari

Passos já foram dados em direção à igualdade racial, mas ainda existe muito a conquistar. O lugar de fala e a oportunidade para mostrar o seu trabalho, sem precisar reafirmar do que é capaz, ainda é um desafio, como conta Biá Boakari, jornalista do Sistema O DIA de Comunicação e influencer digital.

“Minha formação foi diferente porque me formei nos EUA; então, tinha muitas mulheres negras e latinas na minha turma. Mas aqui no Brasil, desde o Ensino Fundamental até quando fiz Publicidade, sempre era a única mulher negra. Estamos ganhando espaço, temos agora produtos e garotas propaganda negras, o que não existia quando eu era pequena. Vejo isso como avanço, mas precisamos de muito mais. Na redação onde trabalho, temos poucas mulheres negras, mas pela menos não sou mais a única”, destaca.


Biá defende que ainda é preciso abrir o diálogo sobre o racismo - Foto: Jailson Soares/O Dia

Biá optou pelo Jornalismo por querer contar histórias. Mas no mundo da moda, que é outro caminho que trilha e compartilha nas redes sociais, nem sempre é fácil ser mulher negra. “Às vezes, me sinto excluída, mas aí entra o racismo que não é explícito, que é a pior coisa no Brasil. Você nunca sabe se não foi chamada porque é negra ou por outro motivo, e se for questionar, acaba sendo convencida de que o racismo não existe. Ainda precisamos abrir o diálogo sobre o racismo, sobre a homofobia e sobre todo preconceito na moda, que deveria ser um espaço de inclusão e aceitações”, pondera a jornalista.

Déborah Radassi reforça as palavras de Biá e defende que as empresas de Comunicação do Piauí precisam designar funções para as mulheres negras, porque falta oportunidade para que tais mulheres mostrem que são inteligentes e podem assumir qualquer função.

“A imprensa deve entender que os negros estão dominando os espaços e que as oportunidades têm que ser entregues sem medo. A gente não tem cota nos veículos [de comunicação], somente em empresas de outros estados. No Piauí, a maioria das mulheres são negras, e onde elas estão? Eu queria ver minhas colegas negras mudando o cenário. Uma coisa que incomoda é ter uma mulher negra no poder”, conclui Déborah Radassi

Por: Sandy Swamy, do Jornal O Dia
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