O trabalho na roça era pesado e o salário mal dava para
garantir as necessidades bá-
sicas. Aos 18 anos, Elenilson
era um dos muitos jovens do
município de Monsenhor Gil
que, por falta de escolaridade
e oportunidade, não conseguira se fixar em um trabalho
formal. Ao surgir um convite
para trabalhar em outro estado com carteira assinada, em
virtude das suas necessidades,
ele não titubeou. Quando
aceitou sair da sua comunidade em buscar de melhores
condições de trabalho, o jovem entrou em um ciclo que
se repete com uma frequência entristecedora no Estado:
a exportação de mão de obra
escrava.
Aos 18 anos, Elenilson foi trabalhar no Pará em busca de melhores condições de vida, mas foi enganado (Foto: Jaílson Soares/ O Dia)
De acordo com o procurador do Ministério do Trabalho no Estado, Edno Moura, a
situação persiste pelos fatores
de vulnerabilidade econômica, social e educacional dos
trabalhadores que são explorados. “Eles desempenham
uma atividade que não exige
muita qualificação, a questão
da dificuldade de obter uma
ocupação do mercado faz com
que as pessoas se submetam a
esse tipo de situação, mesmo
em condições degradantes,
jornadas exaustivas ou se submetendo a uma servidão por
dívida, é uma alternativa que
tem para poder se alimentar.
No Piauí, o principal fator
ainda é o econômico, mas é
claro que têm os ciclos de vulnerabilidade, como o educacional”, destaca.
Ao tempo que jovens deixam o Estado em um ciclo
migratório em busca de trabalho, outros tantos também
permanecem em seus locais
de origem atrelados a atividades degradantes. No Piauí, as
atividades em que mais se aliciam trabalhadores estão relacionadas à extração da palha
de carnaúba, carvoaria, agronegócio da soja e construção
civil.
Segundo Joana Lúcia Feitosa, coordenadora do eixo
migração e trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, o Estado apresenta municípios de Norte a Sul em que
se constata a vulnerabilidade
para a migração e manutenção de atividades de trabalho
escravo.
“Em Barras, migram muitos trabalhadores, em União, São
Braz, São Raimundo Nonato,
Miguel Alves, Porto, Valença, Demerval Lobão e muitos
outros. Quem se mantém no
Estado em trabalhos degradantes em sua maioria está
ligado a questão da palha da
carnaúba. O contexto é esse:
além de exportar, nós também
temos casos de trabalho escravo concretos”, ressalta Joana.
Combate à escravidão sob risco de retrocessos
Os últimos três anos têm
suscitado muitas dúvidas
quanto ao futuro do combate
ao trabalho escravo no Brasil.
A suspensão da Lista Suja dos
empregadores flagrados por
trabalho escravo, a pretensão
da bancada do Congresso em
excluir as expressões “jornada exaustiva” e “condições
degradantes de trabalho”; e
contingenciamento imposto
pelo Governo Federal para
as ações do Ministério Público do Trabalho preocupam o
enfrentamento a esse tipo de
prática em todo o país.
Em 2014, foi suspensa a
publicação da Lista Suja dos
empregadores flagrados por
trabalho escravo, medida decretada liminarmente pelo
presidente do Supremo Tribunal Federal, a pedido de
grandes construtoras. Desde
então, a Lista deixou de ser
publicada pelo Ministério do
Trabalho e só voltou a ser publicada em março deste ano,
depois de quase três anos
sem atualização e só após
uma intensa disputa judicial
com o Ministério Público do
Trabalho (MPT).
Edno Moura comenta a suspensão de divulgação da lista dos empregadores flagrados por trabalho escravo (Foto: Jaílson Soares/ O Dia)
No contexto local, o Piauí
se destaca negativamente
tanto pela exploração de trabalhadores no seu território
quanto pela exportação de
trabalhadores em outro estado. Assim, a lista permitia
avaliar de uma forma adequada como estava a exploração desse tipo de trabalho
pontualmente.
“Infelizmente, por alguns
problemas jurídicos, o Supremo permitiu retirar essa
lista e o Ministério do Trabalho acabou não mais divulgando. Hoje, não temos um
parâmetro seguro de como
estaria situado o Piauí no
contexto nacional, mas pela
experiência que temos, o
Piauí se destaca de forma negativa e ocupa a 8ª ou 9ª posição no índice de exploração
de pessoas. No fornecimento
de mão de obra, a gente, infelizmente, tem ainda uma
atuação mais destacada, que
está entre a 4ª e 5ª posição,
perdendo para alguns estados, como Maranhão e Bahia”, explica o procurador do
MPT-PI, Edno Moura.
E se a suspensão da lista
impacta no enfrentamento
às práticas de trabalho escravo, isso se agrava muito mais
em um contexto em que os
órgãos responsáveis pela fiscalização e repressão a condutas de prática degradantes
têm seu orçamento contingenciado.
No fim de março, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, anunciou um
corte de R$ 42,1 bilhões nas
despesas federais programadas para 2017. O contingenciamento atingiu em cheio
as equipes de fiscalização do
trabalho escravo.
“Nossas ações acontecem
com membros do Ministério
Público do Trabalho, auditores do trabalho que, infelizmente, por conta de problemas orçamentários estão
impedidos de viajar. A degradância dos ambientes de
trabalho continua e persiste,
estamos enfrentando uma
dificuldade enorme, inclusive a título de legislação, porque existe um movimento
no Congresso Nacional que
quer excluir das hipóteses
configuradoras de trabalho
escravo essa degradância e a
jornada exaustiva. São muitos obstáculos a enfrentar”,
explica o procurador.
Piauí em número de resgates
Apesar das dificuldades
que se tornam cada vez mais
perceptíveis no que tange
ao enfrentamento da prática
do trabalho escravo, o Piauí
registra avanços na área. As
fiscalizações e repressões a
este tipo de conduta já livraram mais de 300 trabalhadores de condições análogas à
escrava.

Em 2014, 159 trabalhadores foram resgatados da extração da palha de carnaúba;
em 2015, foram 60 trabalhadores e, em 2016, foram 30
trabalhadores retirados de
trabalhos escravos com a palha de carnaúba e outros 25
no setor de extração de madeira. Ações realizadas pelo
Ministério Público do Trabalho e de seus parceiros.
Segundo o Código Penal
Brasileiro, é considerado
trabalho escravo qualquer
atividade cujas condições
do trabalhador atentem contra a dignidade humana. De
acordo com o artigo 149 do
Código Penal Brasileiro, é
crime submeter o trabalhador a condições degradantes,
jornada exaustiva, servidão
por dívida ou qualquer tipo
de trabalho forçado. Entre
1996 e 2013, mais de 50 mil
trabalhadores em condições
análogas à escravidão foram
libertados no Brasil.
No Piauí, segundo a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), o perfil dos trabalhadores que são aliciados
por essas atividades são homens, de 18 a 35 anos, com
nenhum ou baixo nível de
escolaridade.
Falta de políticas públicas agrava situação de exploração
A Comissão Pastoral da
Terra (CPT) é uma instituição ligada à Igreja Católica
e atua em todo o território
nacional como um serviço
em prol da causa dos trabalhadores e trabalhadoras do
campo, atuando como um suporte para a sua organização.
No Piauí, a entidade se divide
entre os vários eixos de atuação, entre eles, o de lidar com
o enfrentamento à migração e
ao trabalho escravo.
Joana Lúcia Feitosa é a
coordenadora do eixo migração e trabalho escravo e, para
ela, a principal causa da perpetuação do trabalho escravo
é a falta de políticas públicas
que intervenham no meio.
“O mais recente ataque do
governo foi nos cortes de recursos para a fiscalização, o
que é uma afronta aos direitos
humanos, porque a impunidade reina sem fiscalização. Na
esfera penal, os crimes de trabalho escravo geralmente não
são condenados, porque envolvem grandes empresários,
grandes latifundiários, que
não conseguem ser punidos
concretamente. Parece que as
autoridades não têm interesse
de resolver esse problema. Se
não pune quem escraviza, não fiscaliza e se não tem políticas
públicas, como havemos de
reverter isso?”, questiona.
Falar em políticas públicas,
nesse contexto, é debater a
necessidade de amparar o
trabalhador do campo, de viabilizar acesso aos serviços de
saúde e educação, promover
a dignidade humana para que
as pessoas não sejam compelidas a sair da sua terra ou
submeter-se a trabalhos degradantes em outros estados,
por pura e simples necessidade de sobrevivência.
“Ninguém sai da sua terra
natal, deixa sua família, sua
comunidade, porque quer.
Sai porque não tem opção.
Têm algumas migrações que
as pessoas saem para estudar
e é claro que necessariamente
nem todo migrante é escravizado, mas no nosso Estado
muitos dos que migram passam pelo trabalho escravo”,
destaca.
Enfrentamento
Para enfrentar esta realidade, a CPT faz um trabalho de
sensibilização, informação,
denúncia e reivindicação de
políticas públicas para esses
trabalhadores, entendendo
que o combate ao trabalho escravo exige ações que, no seu
conjunto, dependem do real
empenho do Estado, nas diversas vertentes das políticas
públicas.
Na prevenção, contra a
discriminação histórica dos
trabalhadores rurais pobres,
maior público alvo do trabalho escravo no Brasil; na
repressão, que implicaria na
suficiente disponibilidade de
equipes de fiscalização; na punição, para não dar margem à
repetição deste tipo de prática
e na reparação e acesso a condições decentes de trabalho.
“Denunciar essa realidade
é o nosso papel como indivíduo, como ser humano, o
trabalho escravo é uma das
maiores violações que temos
hoje. Por isso, na CTP também trabalhamos a sensibilização da sociedade como um
todo com um Fórum para debater o tema atrelado a outras
instituições”, finaliza.
“A primeira coisa que a gente perde é o nome”, lembra agricultor escravizado no Pará
Elenilson da Conceição,
hoje, tem 32 anos, é casado
e pai de um serelepe garoto.
Leva a vida como agricultor no
Assentamento Nova Conquista, zona rural do município
de Monsenhor Gil, onde tira
do trabalho árduo e diário o
sustento da sua família. A vida
aparentemente pacata, no entanto, guarda lembranças de
um período que ele se recorda
com exatidão, mas que preferia
esquecer. Aos 18 anos, o trabalhador serviu como mão de
obra escrava em uma fazenda
no interior do Estado do Pará,
quando saiu do Piauí acreditando que teria uma melhor
oportunidade de trabalho.
Elenilson hoje vive no Assentamento Nova Conquista junto com outros trabalhadores que foram escravizados (Foto: Jaílson Soares/ O Dia)
“Chegou um homem dizendo que tinha trabalho lá na terra, que a gente ia ter a carteira
assinada e ia ganhar por produção”, destaca o convite que,
à época, fez com que cerca de
30 homens saíssem das suas
localidades para desbravar a
pretensa oportunidade de trabalho no Pará.
O que seria um novo horizonte, na verdade, se tornou
um tormento. Ao embarcar
para o Norte do país, os trabalhadores foram submetidos
a trabalhos degradantes e sem
remuneração justa durante seis
meses.
“Depois de dias dentro do
ônibus, nós descemos em um
lugar lá que não tinha nada
e fomos colocados em cima
de um caminhão de carregar
gado. A primeira coisa que a
gente perde é o nome, o que
era Elenilson passou a ser só
‘Piauí’. Depois, andamos a pé
até uma área dentro do mato.
Lá, só jogaram uma lona e
mandaram a gente fazer nosso
barraco”, explica.
Sem condições dignas de
descanso, alimentação ou
saúde, Elenilson e cerca de
outros 200 trabalhadores de
outros estados, não só do
Piauí, eram submetidos a jornadas extensas de trabalho
para descampar áreas de mato
virgem na comunidade onde
foram fixados.
“Tinha um lugar lá que a
gente tinha que comprar tudo
para comer e para trabalhar. O
que acontecia era que a gente
trabalhava e mal dava para pagar o que tinha que consumir”,
afirma.
Enquadrado na forma de
trabalho de servidão por dívida, quando o trabalhador
executa suas atividades, mas
ica atrelado às condições de
débito com o patrão, o jovem
viu que o trabalho estava muito longe da ideia que foi apresentada inicialmente.
Para piorar, não havia contato com a família e, a todo instante, os trabalhadores eram
ameaçados, caso tentassem
fugir ou não cumprir as metas
de trabalho.
“Nova Conquista” e a consolidação do sonho de liberdade
A história de Elenilson também é recontada por Francisco
Rodrigues, que viveu a mesma
experiência. Após vivenciar a
realidade de ter seus direitos e
possibilidades cerceados, Francisco é direto quando afirma:
“hoje, a liberdade para trabalhar e viver da forma como eu
quero é minha maior felicidade”.
O trabalhador, atualmente,
se dedica às atividades de agricultura e corte de cabelo para
adquirir a renda da família. As
lembranças do período de exploração, apesar de latentes,
são retomadas como um passado que não se repetirá mais.
“A gente acordava duas horas
da manhã para fazer a comida
e ir cortar mato às 4h. Quando
chovia, era uma noite acordado segurando a lona para a
água não cair em cima da gente. Mas a gente só se deu conta
de que estava trabalhando vendido quando deu três meses e
fomos ‘bater a conta’ e o jagunço disse que ainda estávamos
era devendo o fazendeiro. Eles
deram R$ 60 para a gente sair
do Piauí, nessa época, a gente
foi vendido por esse preço”, relembra.
A volta para a casa, família e
para a possibilidade de ter uma
vida digna foi abraçada como
uma nova chance. Com o assentamento Nova Conquista,
Francisco conseguiu seu local
para morar e trabalhar, além de
aprender uma nova profissão.
Francisco agora se dedica às atividades de agricultura e corte de cabelo para adquirir renda (Foto: Jaílson Soares/ O Dia)
“A gente nunca imagina que
vai viver esse tipo de coisa.
Infelizmente, ainda continua
acontecendo porque quem não
tem oportunidade de trabalhar
tem cai nessas histórias. Mas
eu sei que hoje minha vida é diferente, nunca mais será como
foi”, finaliza.
Nova Conquista
Constituída a partir de 2004,
a Associação do Assentamento Nova Conquista reúne 39
famílias de trabalhadores migrantes do município de Monsenhor Gil (PI), explorados
em situação de trabalho escravo no roço de juquira e no
desmatamento, em empreitas
realizadas em fazendas de gado
no interior do Pará.
A cada ano, é costumeira a
migração de milhares de trabalhadores piauienses que saem
em busca de “melhoras” em
outros estados do país. Na época, os de Monsenhor Gil não
fugiram desta regra imposta
pela falta de opções locais de
trabalho e de renda.
O Assentamento Nova Conquista é o primeiro Assentamento criado no Brasil por e
para trabalhadores que passaram por situação de trabalho
análoga à de escravo.
Por: Glenda Uchôa
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